Ao chegar em Juiz de Fora nos anos 1960, a onda renovadora do Concílio Vaticano II e sua recepção em Medellín logo foi assimilada pelo laicato formado na antiga Ação Católica. Suas diretrizes de abertura da Igreja ao mundo moderno e de opção pelos pobres foram como um farol para a vida de Itamar Bonfatti, que há duas semanas foi ao encontro face a face com Deus. Casado com Neide, deixou cinco filha (os) e seis neta (os). Empolgado pelo Movimento Familiar Cristão (MFC), do qual o casal foi presidente nacional por dois mandatos, Itamar viveu a espiritualidade cristã sob o prisma familiar. Deixando para trás uma concepção fechada e restrita, ele entendia a família como espaço de ternura e amor, mas de portas abertas para o mundo e seus dramas.
Coerente com essa concepção, sua casa notabilizou-se pela prática da hospitalidade a quem precisasse de acolhida. Professor na UFJF, Itamar era conhecido pelos estudantes como alguém que não abandonava pessoas perseguidas pelo regime de segurança nacional, embora não fosse ligado a qualquer partido político ou movimento subversivo. Em 1972, durante a vigência do AI-5, essa atitude custou-lhe quase um mês de encarceramento no presídio de Linhares, com humilhações, nudez e injúrias. Em seu recente depoimento à Comissão da Verdade – JF, Itamar declarou que o pretexto da prisão era ter guardado em casa um pacote com panfletos do partido comunista, mas “queriam saber o que de fato eu pensava, o que a Igreja em Juiz de Fora pensava”. E concluiu: “Para mim valeu toda a prisão, pois o que vale é o testemunho da fé. As consequências ruins eram muito pequenas diante disso.”
A casa aberta era o sinal visível de uma mente aberta, capaz de superar a concepção patriarcal da família, que Itamar critica sem dó. Em artigo para a revista Fato e Razão, ele lembrava que até a Constituição de 1998 “sobreviveu àquele absurdo que parecia piada de fim de século: a expressão ‘cabeça de casal’”. Para ele, família só pode ser com a mulher em pé de igualdade com o marido. Certa vez, ironizou o ritual em que a noiva ao se casar é entregue ao futuro marido pelo pai, como se a mulher passasse de um homem para o outro, enquanto a mãe do noivo não o entrega aos cuidados da esposa… No mesmo sentido, criticava a mídia ao valorar o Dia das Mães em detrimento do Dia Internacional da Mulher.
Homem que sempre esteve na linha de frente em questões referentes à família e à atuação da Igreja no mundo moderno, Itamar fez parte do grupo que fundou o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Juiz de Fora, em 1980. Com seu jeito suave e sua fala mansa, era enérgico quando se tratava de defender as vítimas da injustiça social.
Enfim, sua convicção de que, em virtude do Batismo, todo membro do Povo de Deus – seja clérigo, leigo ou leiga – tem a missão de levar ao mundo a Paz de Jesus Ressuscitado, fez de Itamar Bonfatti um incansável lutador pela Justiça, pois sem ela a paz é ilusória. Estando agora junto à verdadeira Fonte da Paz, ele deixa aos leigos e leigas que formam o Povo de Deus o seu exemplo. Sigamos em frente nessa espiritualidade encarnada no mundo de hoje.
Ao comemorar o Dia do Trabalho, hoje tão desvalorizado por um mercado que não se envergonha de contratar trabalhadores e trabalhadoras em regime de precariedade e sem salário digno, olhemos a “pedreira de onde fomos tirados” (Is 51,1): o Povo de Deus em caminhada na História. Que o testemunho de Itamar Bonfatti não nos deixe desanimar nessa longa marcha!
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