Antes que o boleto com a cobrança das multas chegue, a Câmara e o Senado vão colocar em votação a PEC 09/23, que visa anistiar os partidos políticos que não cumpriram a distribuição de percentual para as candidaturas estabelecidas nas cotas definidas pela Justiça Eleitoral, especialmente negros e mulheres. Como a maioria das legendas está envolvida, a matéria deve passar com respaldo de partidos de todos os espectros ideológicos, num clássico comportamento corporativista, o que não é novo na instituição.
Ao sabor do velho ditado: farinha pouca, meu pirão primeiro, o texto vai livrar as legendas das pesadas multas por não cumprirem normas que o próprio parlamento votou e aprovou. Não é de hoje que as legendas são obrigadas a destinar determinado percentual para as cotas, mas isso só vale no papel. Quando muito, abrem-se caminhos incertos para burlar a legislação, como o caso registrado em Minas em que mulheres foram lançadas candidatas sem que muitas delas sequer tivessem conhecimento dessa ação. Eram meras “laranjas” para cumprir o estabelecido em lei. Não tinham qualquer recurso para campanha, que eram desviados para outros candidatos. Tudo, em tese, dentro da lei.
Diversas candidatas foram punidas pela legislação dentro do pacote que atingiu os partidos, mas, enquanto estas, certamente, vão pagar suas multas, ou já pagaram, as legendas entenderam que é preciso fazer algum tipo de reformulação. As cotas continuam, mas o descumprimento será perdoado.
Ao fim e ao cabo, o que ora ocorre é uma estratégia que vai contra os princípios democráticos, uma vez que, quando se estabeleceu as cotas, mesmo que por um determinado período, o espírito da lei era igualar oportunidades. Ao renunciar a multa, o Congresso dá mostras de ser um espaço paralelo, no qual qualquer ação contra seus membros ou legendas deve ter um tratamento diferenciado, contrariando a isonomia legal, cláusula fundamental quando se trata de direitos e deveres em situações semelhantes.
A PEC ainda traz outras consequências por dar margem a dúvida sobre a tramitação de matérias cujo mérito passa pelo mesmo espaço das cotas. Quando se criou o percentual de 30% para as candidaturas, não se percebeu, na ocasião, que era um projeto incompleto, ora confirmado pelos atos que burlaram a sua essência. O próximo passo seria estabelecer cotas de cadeiras, isto é, a começar pela Câmara Federal, seria destinado um número de vagas para as mulheres. Aí há a garantia de equilibrar o jogo no Parlamento.
Esse texto, no entanto, não está sequer no radar da Mesa Diretora, a despeito de a Casa já ter instalada uma comissão especial para tratar exclusivamente desse assunto. A maioria masculina, certamente, vai usar de todos os meios para atrasar a tramitação, pois trata-se de um texto que terá reflexos diretos nos próprios partidos. Hoje, com raras exceções, não se conhecer uma legenda comandada por mulheres ou negros, especialmente entre os partidos de maior porte.
São muitos os desafios e a discussão deve se desenvolver fora e dentro do parlamento, como é o caso do manifesto assinado por lideranças negras filiadas a partidos políticos. Caso contrário, tudo ficará como antes, o que não é bom para a democracia.