Nenhum alimento se limita apenas aos ingredientes que o compõem. Por trás do chocolate ou do caramelo, há sempre um significado incorporado em cada mordida.
Observe como a experiência se transforma a depender do contexto, das memórias pessoais e das informações associadas: se é orgânico, um presente, parte da dieta ou se lembra o que a nossa avó fazia aos domingos.
Ao considerarmos as crenças que carregamos sobre a alimentação, percebemos que os efeitos de qualquer comida vão muito além da quantidade de açúcar que ela possui. Um simples cookie pode representar tanto conforto quanto transgressão. Isso significa que, ao comê-lo, não ingerimos apenas seu valor nutricional – ingerimos também ideias. Ideias que não se fixam apenas no pneuzinho que queremos perder, mas na forma como nos enxergamos.
Pesquisas mostram que pessoas com anorexia, ao olharem para alimentos altamente calóricos, como uma banana split, ativam não apenas áreas cerebrais ligadas ao desejo, mas também regiões associadas à ameaça. Mas não precisamos ir tão longe: quem nunca se sentiu culpado ao repetir a fatia de bolo no aniversário, fazendo involuntariamente a equação entre as horas de academia e o teor calórico de cada garfada? Um exemplo cotidiano de como nossa consciência pode ser mais vulnerável ao peso do que a própria balança da farmácia ao lado.
Ser visto com um milkshake ou com um balde de legumes, especialmente quando se está fora do peso (para mais ou para menos), também não está isento de consequências. Isso revela que qualquer alimento carrega consigo representações não apenas pessoais, mas também sociais.
O famoso ditado “você é o que você come” pode parecer, à primeira vista, um incentivo a escolhas alimentares conscientes, mas também funciona como acusação. Cria um terreno fértil para mercados que, à custa de falácias clínicas, prometem milagres. Não é por acaso que a indústria do bem-estar – de suplementos e comidas fitness – já movimenta trilhões de dólares, superando até a farmacêutica, avaliada em bilhões.
Expressões de terrorismo alimentar como “dia do lixo”, “superfood” ou “comida proibida” deveriam ser abolidas do vocabulário. Pizza ou biscoito recheado podem ser compreendidos pelo que realmente são: comida. Um bem que serve a múltiplas funções – de sobrevivência à socialização – e que, como qualquer outro fenômeno do universo, em excesso não apenas produz consequências, mas também sinaliza que algo em nós está em desequilíbrio.
Por isso, tudo o que consumimos passa invariavelmente por duas digestões: uma no trato gastrointestinal e outra na mente. E cabe aos nutricionistas mais atentos reconhecer essa lógica e se perguntar: será que o cookie que eu vejo significa o mesmo para o paciente? A resposta, inevitavelmente, será não.
*David Sender – médico psiquiatra, psicoeducador, professor e palestrante
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