A Tribuna teve acesso aos pertences de dois ex-militantes, que, previamente, autorizaram a divulgação do material: Afonso Celso Lana Leite e Marco Antônio Victoria Barros. “São documentos que remontam nossa resistência contra a ditadura militar e a história da repressão no país, além da questão pessoal. É muito bom ter o direito de reaver essas coisas que fazem parte de um momento de nossas vidas. No meu caso, há um comprovante da faculdade que frequentava na época. Quando retornei ao país (depois de exilado), nunca consegui provar que havia estudado veterinária na UFMG por dois anos”, afirma Afonso, que também terá acesso a itens como registro civil, boletins escolares e título eleitoral.
Para Marco Antônio, a possibilidade de revisitar o passado é motivo de orgulho. “Tinha 20 anos quando fui preso. Sacrifiquei minha juventude em prol de um Brasil melhor na luta contra o regime militar, que rasgou a Constituição e acabou com a democracia no país. Não sei o que vou encontrar, mas, certamente, trará uma emoção diferente. Tenho pouca coisa que rememora aquela época. Talvez, uma ou outra carta trocada com uma namorada”, explica. Entre seu pertences, esta a anotação de um endereço na Rua Jangadeiros, no Rio de Janeiro. Questionado sobre o pedaço de papel, o ex-militante afirma que não devia haver ligações com a militância política. “Acho que era o endereço de uma namorada.”
Trajetória
Os dois ex-militantes estiveram presos em Juiz de Fora em períodos semelhantes. Apesar de militarem em organização distintas – Afonso integrou o Comando de Libertação Nacional (Colina), mesmo grupo de resistência do qual a presidente Dilma fez parte, e Marco Antônio manteve ligações com um grupo ligado à Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella – os dois foram detidos em Belo Horizonte, após a repressão estourar uma série de organizações políticas em 1969.
Após a prisão, eles enfrentaram violações dos direitos humanos e torturas em unidades militares de outras cidades, antes de serem transferidos para Juiz de Fora. Entretanto, Marco Antônio revela que, apesar de não ter passado por padecimentos físicos nas unidades juiz-foranas, existiam outros tipos de pressão. “Havia um terror psicológico. Tiravam os nossos livros e nos deixavam nus, por exemplo. Acabou que isso proporcionou uma convivência mais coletiva, com compartilhamento de alimentos, leituras conjuntas e discussões politizadas.”
O mesmo destino que atou as duas histórias durante a prisão em Juiz de Fora, os distanciou pouco tempo depois. No início de 1971, Afonso acabou libertado na negociação pelo resgate do embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado em ação da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que resultou na soltura e embarque de 70 presos políticos para um exílio no Chile. Pouco mais de dois anos depois, com o golpe orquestrado pelo general chileno Augusto Pinochet, o brasileiro partiu para um segundo exílio na Alemanha e só retornou ao Brasil em 1981.
Por outro lado, Marco Antônio seguiu em Juiz de Fora até sair em liberdade condicional em 1973, após quatro anos e oito meses em regime fechado. “Depois disso, tinha que comparecer regularmente em unidades policiais ou militares. De dois em dois meses, precisava me apresentar ao auditor em Juiz de Fora. Inclusive, em uma dessas incursões, fui para a cidade junto com Márcio Lacerda (prefeito de Belo Horizonte) e Fernando Pimentel (governador eleito de Minas Gerais) que estavam na mesma situação”, lembra.
‘É preciso que tenhamos cuidado’
Os dois ex-militantes defendem os trabalhos realizados pelas comissões da verdade país afora como fundamentais para reviver a história recente do país e evitar que o Brasil retorne a vivenciar outro período autoritário. “Tive quatro companheiros assassinados. Foi um período traumatizante, que jogou o país em um abismo e que possui consequências até os dias de hoje, com situações como a impunidade e várias outras distorções do sistema político. Recentemente, vivemos um exemplo de democracia em uma eleição muito acirrada, onde os dois grupos que disputaram o voto do eleitor conseguiram passar suas mensagens. Isto é algo fundamental”, avalia Marco Antônio.
No mesmo sentido, Afonso revela o receio gerado pelo surgimento de manifestações conservadoras e antidemocráticas, como o grupo que, no início do mês, foi às ruas de grandes cidades do país clamar por uma nova intervenção militar. “A gente se transforma e amadurece. Todavia, os ideais democráticos e socialistas permanecem. Hoje em dia, vejo uma situação que lembra a vivida em 1964. Não acredito que vá ocorrer algo semelhante, entretanto, há uma radicalização de alguns setores da sociedade. É preciso que tenhamos cuidado, pois grande parte dos que defendem tal pensamento não viveu os momentos difíceis enfrentados por nós, durante o governo militar.”
Dilma
Sobre a convivência com Dilma, que também passou por prisões em Juiz de Fora, Afonso lembra que, mesmo integrando a mesma organização, não conviveu com ela quando esteve preso em Juiz de Fora. “Éramos da Colina. Entretanto, acabei me engajando com a luta armada e, por isso, não tinha muito contato com vários integrantes do grupo.”
Os arquivos contendo pertences pessoais da presidente não foram disponibilizados para a reportagem, já que, após contato de integrantes da Comissão da Verdade de Juiz de Fora com o Palácio do Planalto, não houve uma autorização expressa para a divulgação dos documentos, assim como ocorreu com os demais que integram a lista daqueles que terão itens restituídos pela Auditoria Militar. Todos os nomes constantes da relação, incluindo Dilma e Lacerda, foram contatados para retirarem seus pertences. No caso daqueles que já faleceram, a devolução deve ser feita a familiares.
Cumprir a lei após 40 anos
Vice-presidente da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora (CMV-JF) e representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no grupo, a advogada Cristina Guerra afirma que a restituição dos pertences apreendidos dos presos políticos reforça o atual processo democrático vivenciado no país. “Por meio da juíza (juíza-auditora Maria do Socorro Leal), que é uma pessoa muito democrática, celebramos esse convênio de colaboração. Assim, foi encontrada uma sacola com todos estes documentos, que estavam separados por nomes. Essa devolução deveria ter ocorrido ao final dos processos. Porém, muitos deles não tiveram acesso, seja por terem saído do país, por desinformação sobre a localização dos papéis, por terem morrido ou por receio. Como representante da OAB, acho fantástico poder cumprir a lei após 40 anos.”
Cristina reforçou que todos os nomes constantes da relação foram contatados pela comissão que pretende entregar em mãos a documentação encontrada. “Até mesmo para aqueles que não poderão estar presentes na solenidade de segunda-feira.” Os integrantes da Comissão revelaram ainda ter recebido uma ligação do deputado federal Nilmário Miranda, que buscava por acervos pessoais perdidos durante o período militar. “Ele disse que possui poucas lembranças do período entre seus 20 e 29 anos”, lembra a advogada. Entretanto, entre os documentos encontrados na Auditoria, não havia itens apreendidos do parlamentar.
Respeito ao cidadão
Presidente da Comissão, a professora Helena da Motta Salles reforça o simbolismo do ato. “Ninguém ficou sem documento todos esses anos. Não se trata disso. Entretanto, em respeito aos cidadãos que tiverem seus direitos violados, trata-se de um gesto de respeito, que demonstra a mudança pela qual passa o país. A atitude da juíza serve como um exemplo para outras instituições.”
Iniciados em abril, os trabalhos da comissão já colheram dezenas de depoimentos de juiz-foranos que tiveram seus direitos humanos violados durante o regime autoritário, além de outras pessoas com passagens pela cidade. “Por incrível que pareça, ainda tem muita gente que não sabe que isso ocorreu no âmbito local. É importante que esta história venha à luz por depoimentos e pelo trabalho de arquivo que vem sendo realizado”, reforça Helena.