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Lei “Infância sem Pornografia” pode ser questionada na Justiça por OAB e núcleo da UFJF

pornografia arquivo marcelo
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A Câmara Municipal publicou, na última sexta-feira (26), a íntegra do projeto de lei substitutivo que instituiu, em Juiz de Fora, o programa chamado “Infância sem pornografia”. A tramitação da nova legislação, que já está em vigor, foi cercada de polêmicas. De autoria do vereador José Fiorilo (PTC), o texto final foi aprovado pelo Legislativo em abril deste ano, após ter sido apresentado em outubro de 2016, retirado e reapresentado em janeiro de 2017. Após a validação do dispositivo pelos parlamentares, em votação marcada por tumulto de grupos de posições distintas sobre a proposta, a lei chegou a ser promulgada pela Prefeitura no dia 21 de maio com a supressão de dois artigos, rejeitados pelo Poder Executivo por apresentar supostas inconstitucionalidades. O veto parcial do prefeito Antônio Almas (PSDB), no entanto, foi derrubado pelo Legislativo no último dia 18, o que faz com que a proposta passe a valer em sua integralidade. O fim da tramitação parlamentar da matéria, todavia, não parece encerrar as polêmicas, e o texto legal pode ter questionamentos jurídicos sobre sua constitucionalidade. Além de setores ligados a servidores municipais, a subseção de Juiz de Fora da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/JF) já estuda a possibilidade de se movimentar para tentar reverter os efeitos da legislação em questão.

Presidente da Comissão de Direito Constitucional do braço local da OAB, o advogado Bruno Stigert considera que a legislação apresenta inconstitucionalidades tanto do ponto de vista formal quando do material. A formal ocorre quando uma lei não segue o procedimento de elaboração estipulado pelas Constituições – federal e estaduais – e leis. Já a material se configura nas situações em que uma legislação se mostra incompatível com determinadas previsões constitucionais. “Na perspectiva formal, entendemos que o projeto inicialmente aprovado violava à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional e usurpava competência da União para estabelecer normas gerais sobre o tema. Igualmente, afrontava a competência privativa da União para legislar sobre direito civil, dentre outras possíveis violações. Na perspectiva material, as dúvidas sobre sua constitucionalidade permeiam a violação aos conjuntos de normas constitucionais que protegem direitos fundamentais como livre manifestação de pensamento e da atividade intelectual; a liberdade de ensinar e aprender; e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, afirma o advogado.

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Na avaliação do representante da OAB/JF, a legislação ainda traz vieses de inconstitucionalidade por ofender a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho; o pluralismo político; a sociedade livre, justa e solidária; o pleno desenvolvimento da pessoa humana e o seu preparo para o exercício da cidadania; a valorização dos profissionais da educação escolar; a gestão democrática do ensino público e o padrão de qualidade social do ensino. “O projeto final apresenta corpo mais enxuto e preocupação com uso de terminologias que podem levar a uma ‘patrulha’ do serviço público municipal, notadamente os professores. Exemplo claro disso é o novo artigo 3°, que, em seu parágrafo único, optou por conceituação técnica sobre o sentido do termo ‘pornografia’. De fato, o texto legal rege que “considera-se pornografia infantil o que está definido no Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança promulgado”, citando decreto e legislação federal.

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Legislação pode ser objeto de Adin

De acordo com as regras vigentes, a lei que implanta em Juiz de Fora o programa “Infância sem pornografia” pode ser objeto de dois tipos de contendas judiciais. No âmbito estadual, a legislação municipal pode ser objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Neste caso, a Adin pode ser proposta pelos seguintes agentes: o governador do Estado; a Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de Minas gerais (ALMG); o Procurador-Geral de Justiça; o prefeito ou a Mesa Diretora da Câmara Municipal; o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado de Minas Gerais; partido político com representação na ALMG; entidade sindical ou de classe com base territorial no Estado; e a Defensoria Pública. Já no âmbito federal, a lei municipal ainda pode ser objeto de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

Além da avaliação feita pela Comissão de Direito Constitucional da OAB/JF, o Núcleo de Prática da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), também através do professor Bruno Stigert, estuda em conjunto com setores da sociedade civil e atores políticos locais, regionais e nacionais, a possibilidade de utilizar os instrumentos judiciais mencionados. À Tribuna, a coordenadora-geral do Sindicato dos Professores (Sinpro), Maria Lúcia Lacerda, já havia antecipado que a entidade irá buscar as medidas cabíveis, inclusive pela via jurídica contra o programa “Infância sem pornografia” no âmbito municipal, sem, no entanto, dar maiores detalhes sobre suas estratégias. “Não menos importante é a constatação de que a lei nada mais é do que uma legislação simbólica, com nítido apelo de populismo religioso, cuja finalidade é dar satisfação ao eleitorado e criar um álibi no sentido de que os legisladores locais estão fazendo o seu trabalho”, considera Stigert.

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Norma similar é questionada no STF

Para o advogado, a legislação oriunda do projeto de Fiorilo remete a outra proposição também envolta de muita polêmica e é, segundo suas palavras, uma espécie de “filho” de programa conhecido como “Escola sem partido” – proposta que já chegou a tramitar na Câmara pela assinatura vereador André Marino (PSC) entre 2016 e 2017, mas teve seu andamento suspenso a pedido do próprio autor. Mariano, contudo, já manifestou a intenção de retomar as discussões no Palácio Barbosa Lima. Stigert lembra que a constitucionalidade do “Escola sem partido” também é alvo de questionamentos no âmbito jurídico. “Há no STF duas ações diretas de inconstitucionalidade que visam questionar a constitucionalidade de leis estaduais que possuem objetivos e propósitos bem próximos ao da lei local (Infância sem pornografia). Um deles está sob relatoria do ministro Roberto Barroso, que, no caso, concedeu medida cautelar suspendendo os efeitos das referidas leis até o julgamento do mérito, sendo possível arriscar, levando em consideração a atual composição da Corte, que a decisão final tende a ser pela inconstitucionalidade. Por que o Legislativo municipal se mobilizou no sentido de aprovar uma lei com conteúdo parecido de outras que estão prestes a ser declaradas inconstitucionais no STF?”, questiona.

O advogado ainda critica o suposto viés de neutralidade que, de acordo com defensores da legislação que implementa o programa “Infância sem pornografia”, é um dos objetivos da nova lei municipal. “No plano ético é possível ainda se questionar: por que uma lei que usa o ‘véu’ da ‘neutralidade’ menciona ‘convicções religiosas’? Ser neutro em um país injusto, preconceituoso, misógino, machista e que ocupa o topo no ranking de assassinatos contra LGBts no mundo é ficar do lado certo? Tenho muitas dúvidas acerca do termo neutralidade neste contexto!”, pontua o presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/JF.

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Educação emancipatória

Neste sentido, Stigert considera que a legislação em vigor ainda possui proposições questionáveis sob o ponto de vista constitucional quando dita que “os pais e responsáveis têm o direito de educar seus filhos menores de acordo com suas convicções religiosas e éticas”. Segundo o advogado, cabe ressaltar que “os pais possuem não só direitos, mas principalmente deveres de assistir seus filhos e assistir é permitir uma emancipação, no caso aqui debatido, pela educação”. Ele defende ainda que a Constituição é clara ao determinar que é dever não só da família, mas também do Estado e da sociedade assegurar à criança uma série de direitos, dentre eles a educação e cultura. “A Constituição brasileira visa uma educação emancipatória, cidadã e voltada para a construção de futuros cidadãos críticos e capazes de influenciar diretamente em uma realidade fortemente violenta com eles e outros grupos vulneráveis”, avalia.

 

Prefeito havia vetado dois artigos

Antes de ver o entendimento da Procuradoria-Geral do Município (PGM) ignorado e derrubado pela Câmara com o apoio de sua base de governo na Casa Legislativa, o prefeito Antônio Almas (PSDB) havia vetado dois artigos do projeto de lei substitutivo apresentado pelo vereador José Fiorilo. Assim como a OAB/JF, o entendimento da Administração é de que as redações incidem em vícios de inconstitucionalidade. Uma das negativas atingiu o artigo 2º que afirma que cabe à família “criar e educar seus filhos, crianças e adolescentes”. Para a PGM, o dispositivo é inconstitucional por interferir nas diretrizes e bases nacionais da educação, matéria cuja competência para legislar é exclusiva da União”. Para a Prefeitura, a redação, ao definir que cabe à família e responsáveis a incumbência de educar seus filhos nos termos de suas convicções religiosas e éticas, também inviabiliza a aplicação da equidade no ensino básico e fundamental.

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O Executivo também havia vetado o artigo 5º da legislação em questão. O dispositivo define que a violação a dispostos na lei que implementa o programa “Infância sem pornografia” implica em penalidade previstas pela lei federal que define o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Novamente, a PGM aponta inconstitucionalidade “ao prever o cometimento de crimes para os casos de prática de pornografia infantil, o ECA legislou sobre matéria penal, exclusiva da União’. A reportagem pediu à Prefeitura que se manifestasse sobre a possibilidade de defender seu entendimento com a proposição de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra o texto final promulgado pela Câmara. Na semana passada, o Município informou à reportagem que aguardava a promulgação da lei aprovada pela Câmara para voltar a analisar o seu conteúdo. Novamente questionado nesta quarta-feira (4) sobre a intenção ou não de questionar a constitucionalidade dos artigos pela via judicial, a Prefeitura afirmou que “analisará tecnicamente, através da Procuradoria Geral do Município”.

Histórico

Desde que iniciou sua tramitação, no final de 2016, a proposta que motivou a legislação vigente foi bastante criticada por setores ligados à educação e defendida por grupos de cunho mais conservador, que chegaram a protagonizar enfrentamentos nas dependências do Palácio Barbosa Lima. Na prática, a lei resulta em uma compilação de regras e legislações já vigentes, citando artigos constitucionais, do Código Civil, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e de outros decretos e leis ordinárias federais.

Representações de servidores municipais, em especial do magistério, consideram a norma inócua por se tratar de temas já abarcados por legislações federais, e que, de certa forma, poderia ser utilizada para assediar funcionários públicos ao valer-se do apelo da associação das palavras “pornografia” e “infância”. Assim, o funcionalismo público teme ser colocado sob constante suspeição.

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Ao longo de todas as etapas de tramitação do dispositivo, a proposição de Fiorilo teve apoio da grande maioria dos vereadores que integram a atual legislatura, e os únicos votos contrários à matéria foram dados pelos vereadores Roberto Cupolillo (Betão, PT) e Wanderson Castelar (PT).

 

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