Engenheiro por formação e político de convicção, Itamar Franco uniu as duas condições para fazer a mais difícil travessia da história recente do Brasil. No momento em que o país saía de um obscuro período ditatorial e partejava uma nova democracia, coube ao mineiro de Juiz de Fora assegurar essa transição, quase sucumbida por uma aguda crise política. "Urge a união de todos para o trabalho de recuperação do país. Numa palavra, e simplesmente, pôr a casa em ordem. A simples Casa do Brasil. A casa brasileira." Estavam lançadas as diretrizes de sua gestão, que restauraria os mecanismos de ação do Estado, cujas distorções haviam levado ao impeachment de seu antecessor, o ex-presidente Fernando Collor.
Atento ao anseio de uma mobilização social sem precedentes na história nacional, Itamar convocou todas as forças representativas do meio político e das ruas para juntos consolidarem a democracia. "Todos nós estamos no mesmo barco." Em contrapartida, oferecia o compromisso de reestruturar o país, inclusive e sobretudo moralmente. "A nação pode estar certa de que não haverá corrupção no meu Governo." Para isso, instituiu a Comissão Especial de Investigação (CEI) e fez valer a austeridade, trazida de Minas, no Palácio do Planalto. O caso mais emblemático de Itamar no campo da ética e da moralidade viria em 1993, quando demitiu seu amigo e, então, ministro da Casa Civil, Henrique Hargreaves, por causa de uma suspeita de corrupção na confecção do orçamento. Inocentado três meses depois, Hargreaves foi reconduzido à pasta. A lição até hoje nunca se repetiu.
O outro desafio da transição democrática, tão importante quanto o enquadramento ético, era a estabilização da economia. Diferentemente, dos pacotes mágicos dos seus antecessores, Itamar buscou uma solução para conter a inflação que não passasse por congelamento de preços ou nada tão traumático como o confisco de aplicações. Primeiro, promoveu uma série de ajustes nas contas públicas para dar sustentabilidade ao seu plano de estabilização sem risco de endividamento público. Em um segundo momento, negociou a dívida externa com os bancos e elevou as reservas internacionais brasileiras. Foi nessa conjuntura que o Plano Real, que fez a inflação recuar 505%, alcançou o sucesso e elevou a taxa de crescimento do país para 5%. "Pensavam que o matuto aqui ia chegar fazendo bobagens. Achavam que a inflação ia disparar. Não é o que está acontecendo. O diabo não é tão feio quanto parece."
Se o "dragão" da inflação já não era mais tão feio, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) chamava atenção para um dado vexaminoso: 32 milhões de brasileiros estavam vivendo abaixo da chamada linha da indigência. "Que modernidade é esta em que tantos não têm o que comer nem onde morar?", perguntava um presidente angustiado. Mais uma vez, ele convidou a sociedade para enfrentar o problema. Todos os ministros foram orientados a entrar na luta contra a fome. A resposta dos movimentos sociais veio personificada no engajamento do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que criou a Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida. Dessa parceria entre sociedade e Governo, nasceu o Conselho de Segurança Alimentar (Consea).
Por fim, no campo político, Itamar conseguiu outro fato raro, eleger seu sucessor, fato que não acontecia desde a República Velha. Fernando Henrique Cardoso, seu ex-ministro da Fazenda, foi eleito com o compromisso de aprofundar a estabilidade econômica. Em 1995, dois dias depois de deixar Brasília, Itamar retornou mineiramente a Juiz de Fora com a justa sensação de dever cumprido. "Combati o bom combate e guardei a minha fé. Cumprimos o nosso dever. Saio orgulhoso de ter tido uma transmissão que o país há muitos anos não assistia: fraterna, amiga e, sobretudo, democrática."
* Colaboraram Amanda Fernandes, Marcos Araújo e Renata Brum
Cobertura sobre a morte de Itamar:
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