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‘Imagina se cada um de nós estiver armado’, diz antropólogo

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Soares é considerado um dos maiores especialistas em segurança pública do país (Foto: Divulgação)
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Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e é considerado um dos maiores especialistas em segurança pública do país. Ele já ocupou cargos públicos de destaque na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, nos governos de Anthony Garotinho (1999 a 2002) e Benedita da Silva (2002), e na Secretaria Nacional de Segurança Pública, nos dez primeiros meses do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É também co-autor do livro “Elite da Tropa”, que inspirou o longa-metragem “Tropa de Elite”, um dos principais filmes da história do cinema brasileiro. Em visita a Juiz de Fora, para uma palestra na UFJF, Soares concedeu entrevista ao Jornal Tribuna de Minas e ao Programa Pequeno Expediente da Rádio CBN. Na visão dele, o combate à violência e aos crimes de homicídios depende de um trabalho articulado, intersetorial, que não inclua apenas as instituições policiais, mas outras políticas públicas. Nesta entrevista, concedida aos jornalistas Paulo César Magella e Renato Salles, ele destaca que é preciso conhecimento da peculiaridade de cada local para que ações contra a criminalidade produzam, de fato, algum resultado e se posiciona contrário à presença do Exército nas ruas do Rio Janeiro como forma de conter a crise que a cidade atravessa no campo da segurança pública. É ainda enfático ao dizer que a liberação das armas à população só irá contribuir para que a sociedade corra o risco de sofrer violências mais graves.

Tribuna de Minas – Sobre o Plano Nacional de Segurança, no período inicial da gestão do presidente Lula, do qual o senhor é um dos co-autores, uma das propostas apresentadas foi o Sistema Único de Segurança. Ele saiu do papel? Se saiu, foi de forma precária? O que ainda existe daquele projeto?

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Luiz Eduardo Soares – O problema dos governos, além de outros, é a falta de continuidade, sobretudo quando há conflito político, pois isso acaba impondo obstáculos à sequência do trabalho anterior. A despeito do fato de termos um plano, que talvez tenha sido o primeiro apresentado e discutido em uma eleição, em 2002, a partir de um certo momento, constatou-se que não era adequado, racional, conveniente à presidência da República, portanto à União, assumir maiores responsabilidades na segurança pública. É muito conveniente lavar as mãos e deixar a carga mais pesada sobre os ombros dos governadores. Portanto, isso acaba desestimulando todos os que chegam à presidência, que já têm muitas áreas de desgaste e procuram, portanto, evitar. Nós chegamos a negociar com os 27 governadores na época, e todos eles assinaram e endossaram um acordo. Seria nossa plano vinculado ao Susp (Sistema Único de Segurança Pública). Nós implantaríamos uma série de reformas que exigiriam mudança constitucional, o artigo 144 teria de ser reformulado. Então, iríamos avançando na transformação do modelo policial e na arquitetura institucional da segurança. Ocorre que, a despeito do endosso dos governadores e de um processo que fluía razoavelmente bem, infelizmente, não se deu o passo subsequente, justamente porque a União, o Governo federal, não quis assumir a responsabilidade de conduzir um processo que o associaria necessariamente aos resultados da segurança na mentalidade popular e, portanto, voltamos à estaca zero. Quando o ministro Tarso Genro assumiu no segundo mandato do presidente Lula, ele então retomou a ideia do Susp e a incluiu no seu plano, que era o Pronasci, programa de segurança e cidadania. Mas isso acabou não tendo um desdobramento maior, acabou se perdendo num conjunto de iniciativas mais fragmentárias, positivas, mas não suficientes, para promover maiores mudanças. Portanto, a ideia do Susp continua sendo uma ideia.

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– Também foi criada a ideia de Gabinetes de Gestão Integrada nos estados. Aqui, em Minas Gerais, houve uma experiência parecida. A Polícia Civil e a Polícia Militar, aqui em Juiz de Fora, por exemplo, trabalham num espaço único, mas, de uma certa forma, não é apenas uma questão física, mas uma questão política, de unidade, que não existe. Na questão dos Gabinetes de Gestão Integrada era fazer uma fusão, acabando com essa dicotomia?

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– Nós não teríamos autoridade para isso, porque essa é uma definição que depende da Constituição, e o artigo 144 determina que se atribuam responsabilidades distintas e supostamente complementares à Polícia Militar e a Polícia Civil. Mas em todo o Brasil isso não é uma peculiaridade de Juiz de Fora, há muita dificuldade de colaboração, nem diria integração, mas, pelo menos, colaboração. É muito difícil, pois são duas corporações distintas com papéis diferenciados. Por isso, há uma expectativa muito grande, inclusive da maioria dos policiais no Brasil todo. Nós fizemos, a esse respeito, para que houvesse, não digo uma fusão, mas uma espécie de outro desenho institucional, de modo a que todas as polícias desenvolvessem o ciclo completo, ou seja, realizassem todas as tarefas da polícia, como o trabalho ostensivo e repressivo, que hoje é monopólio da Polícia Militar, e o trabalho investigativo, que hoje é monopólio da Polícia Civil. A Polícia Militar não é judiciária. Então, teríamos um quadro de distinções de outro tipo. Talvez distinções regionais ou quanto a tipo de crime, e essas polícias não seriam mais militares e não disporíamos mais de uma Polícia Militar.

 

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– Há uma escalada nos índices de violência. Juiz de Fora completou recentemente o homicídio de número cem, e essa é uma discussão que, de certa forma, deve pautar as eleições do ano que vem. Há uma solução de imediato para esse problema, que os candidatos possam oferecer em 2018?

– Acho que os candidatos que quisessem conquistar a confiança deveriam dizer assim: é impossível resolver esse problema de imediato. Não vamos criar ilusões, mas vamos dar o primeiro passo para mudanças mais profundas estruturais, mesmo na área da institucionalidade da segurança pública, para que nós não venhamos a fazer essa pergunta ou enfrentar esse desafio amanhã, porque o fato é que estamos sempre sendo reativos. Nós reagimos às emergências de forma desesperada, atabalhoada, voluntarista. Apagamos algum incêndio, mas acabamos por reproduzir as condições que tornaram possível, originalmente, que o problema emergisse. Se queremos de fato alterar esse quadro, temos que começar a pensar no longo prazo. É claro que a população precisa de uma intervenção imediata para salvar suas vidas. Em primeiro lugar, é preciso respeitar as peculiaridades locais, as especificidades que têm que ser estudadas e conhecidas. Há portanto toda uma abordagem de pesquisa que não exige muito tempo. Nós podemos promover mudanças profundas com redução drástica de homicídios em seis meses por exemplo. Há exemplos no Brasil. Eu participei com o prefeito Tarso Genro, em 2001, de uma experiência, em Porto Alegre (RS), e, em seis meses, zeramos os homicídios na área mais violenta e mais pobre da cidade, num bairro de 150 mil habitantes chamado Restinga. Esse experimento, como vários outros no Brasil, mostram um trabalho articulado, intersetorial, usando não apenas as instituições policiais, mas outras políticas públicas bem orientadas.

– A possibilidade de armar a população pode de fato minimizar a violência ou, ao contrário, pode fomentá-la?

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– Fomenta certamente a violência, porque acaba por realimentá-la. Imagina se cada um de nós estiver armado. Eu vou até usar uma figura, uma imagem, que foi usada pelo atual ministro da Defesa. Quando era líder na Câmara do movimento pelo desarmamento, o Raul Jungmann dizia: imaginem a minha filha saindo de casa. Eu pergunto a ela: você está armada? Você está com a sua arma na bolsa. Eu pergunto ao meu filho que está indo ao estádio de futebol: você está levando sua arma, carteira de identidade, dinheiro para tomar um sorvete? Sim, pode ir. Você entra num táxi e supõe que o motorista está armado e o outro que o fecha logo adiante tem a sua arma, o vendedor da esquina que pode não gostar da sua expressão tem a sua arma. Já imaginaram? Chega a ser bizarro! A ideia de que nós, estando armados, estamos mais protegidos é um equívoco já demonstrado amplamente por pesquisas nacionais e internacionais. Ao contrário, se estamos armados, corremos mais riscos de violências mais graves.

 

– De qualquer forma, o ministro Jungmann está com um problema sério, porque uns querem o Exército nas ruas, outros não, mas é uma questão muito presente no Rio de Janeiro. A violência chegou a um status que pode ser considerado como estado de guerra no Rio. O que pode reverter isso?

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– É muito preocupante e vou dar a resposta que o comandante do Exército deu recentemente: as forças armadas não devem participar da segurança pública, não estão preparadas para fazê-lo. Elas não têm como contribuir na segurança pública no sentido cotidiano, rotineiro. Pode eventualmente ajudar, como iniciativas de apoio à Polícia Rodoviária Federal, fazendo bloqueios na estrada, abordagens que têm sido capazes de reduzir um pouco o tráfico de armas. A Marinha pode fazer vigilância na costa. Há aeroportos clandestinos, nos quais a Aeronáutica pode contribuir. Sobre a ideia da guerra, sempre fui contrário a ela, porque não temos efetivamente uma guerra. E se usamos essa expressão, estamos autorizando aqueles que estão envolvidos no confronto a agirem como se estivessem em uma guerra, não considerando o suspeito como suspeito, mas como inimigo a ser abatido, a ser morto. Se há autorização na guerra para matar o inimigo, nós transportamos para vida cidadã essa possibilidade, essa autorização. Eu costumo dizer o seguinte: é guerra, eu não concordo, mas digamos que seja, então não se trata de segurança pública, nem de justiça criminal. Se é guerra se trata de construção da paz, que é uma tarefa nobre, política, superior, que envolve negociação, outro tipo de postura e de enfrentamento, e isso tem muitas consequências que acabam sendo positivas e podemos virar pelo avesso o argumento da guerra. Quanto à solução imediata, se eu tivesse alguma possibilidade de influir no Governo do estado diria: interrompam todas as incursões policiais às comunidades vulneráveis e às favelas. Elas estão matando de forma irresponsável, criminosa, seus próprios membros, os membros das polícias e inocentes e também suspeitos que não podem ser liquidados. Qual é o benefício da incursão se a polícia sai imediatamente depois, eventualmente, com duas ou três armas e alguma quantidade de droga. Isso justifica o terror que se impõe? A resposta imediata de alguém de bom senso será: então deixamos ao Deus dará as favelas? De modo algum. Temos que reorganizar nossas polícias, prepará-las para outro tipo de abordagem, repactuando a relação entre Estado e sociedade nas áreas vulneráveis.

 

– O tema de sua palestra na UFJF foi o Brasil de 2013 para cá. Que Brasil é esse que ressurgiu a partir de 2013, quando o povo foi às ruas?

– Sendo bastante sintético, eu diria que nós vivemos um momento muito importante em 2013, que não se esgotou nas manifestações daquele ano e que tão pouco merece uma avaliação por seus efeitos imediatos, como não houve efeitos, não houve reforma política e qualificação das políticas públicas e etc. Então teriam sido vãs, inócuas, ociosas aquelas manifestações, mas eu não vejo assim. Acho que ali houve uma experiência de outro tipo relativamente ao protagonismo da cidadania. A cidadania no Brasil vivenciou ali um outro tipo de relação com o espaço público. As grandes manifestações eram de rebeldia ou de crítica ao status quo, porque o Brasil tinha melhorado e por isso houve a rebelião. Quando estudamos as sociedades em estudos comparados entendemos isso. Tocqueville, que é um teórico francês do século XIX, já nos disse que a Revolução Francesa ocorreu porque um grupo que tinha o que perder começou a sentir, efetivamente, a possibilidade dessa perda. Era uma classe subalterna, mas que já vivia o acesso a certos bens que estavam em risco. Então, temos uma distinção daqueles que vivem numa indigência da miséria absoluta e, portanto, na impotência. E quem vive assim, vive pensando e trabalhando para a sobrevivência cotidiana e de modo algum se coloca como protagonista no cenário político. Agora, quando existe redução da miséria e quando há expectativa de se redefinirem de forma mais ambiciosa qualquer risco para esse projeto, já significa perda e é capaz de abalar o imaginário e a sensibilidade política dos cidadãos. Além disso, a política do ministro Gilberto Gil foi muito importante por plantar no Brasil o ímpeto criativo na juventude orientado para cultura, artes, música. Isso associado ao ingresso nas universidades daqueles que estavam acostumados a estar sempre excluídos. Houve ali um abalo sísmico na sociedade. O que ocorreu depois? Tivemos essa imensa energia precipitada e tivemos 2014. As eleições não foram capazes de canalizar essas demandas. No entanto, isso tudo ficou para nós como intensidade e nós passamos a tratar o adversário como inimigo, a divergência como uma anátema e a diferença política como uma diferença moral e passamos a viver o ódio como alimento cotidiano, nossa ração diária, de relação, de reflexão, de manifestação. Eu acho que essa intensidade provém dessa nova energia que está no ar, que pode nos conduzir a caminhos ambíguos positivos ou negativos.

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