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Como é que se faz História?

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“Imagina o Enem daqui a alguns anos”, “Se para nós que estamos vivendo o momento é difícil entender, imagina nos livros de História”… Certamente você já ouviu ou mesmo disse algo parecido com estas frases ao comentar o cenário crítico da política brasileira atualmente. De fato, é curioso pensar em como tais acontecimentos serão recontados no futuro pelos livros didáticos e historiadores. Segundo especialistas, uma boa pesquisa histórica começa com a busca por textos originais, passa por uma análise criteriosa dos fatos e uma avaliação do contexto em que estão inseridas. Desta forma, tem-se uma boa chance de se escrever História com H maiúsculo.

Para o historiador Ricardo da Costa, a preocupação mais fundamental do profissional da historiografia é se ater à documentação original de um fato, buscar o acontecimento mais “na fonte” possível. “É claro que a história não é uma ciência exata, mas tudo que é remontado pelo historiador tem que ter documentos como prova, e qualquer interpretação tem, necessariamente, que ser baseada no que dizem estes documentos, os originais, os que se restringem a registrar um acontecimento”, aponta o especialista. Neste sentido, o cientista Paulo Roberto Figueira Leal acrescenta que é preciso ter cuidado especial com a análise de registros feitos pela imprensa. “Temos que analisá-la percebendo que ela não é um agente neutro. A imprensa tem interesses políticos e econômicos que se manifestam no modo como escolhe quais fatos cobrir (e sobre quais calar) e no modo como os enquadra”, exemplifica o especialista.

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Costa utiliza o momento político atual do Brasil para ilustrar como ele deveria ser abordado pela historiografia, buscando não perder a fidelidade ao que, de fato, aconteceu. “Um historiador teria que ler toda a documentação envolvida no processo do impeachment: as delações, a defesa do Governo, as votações em cada instância, tudo, e não o que saiu em jornal tal ou o que foi dito em uma rede social. Registros da imprensa, depoimentos, fotos, manifestações artísticas diversas e outras fontes ajudam a captar as tensões e o clima do momento, mas são recursos ilustrativos, não podem ser aquilo que embasa a pesquisa histórica.”

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Na visão do historiador e diretor editorial da editora Contexto, Jaime Pinsky, não é possível estabelecer um período de tempo para um fato se tornar histórico. “Tem que ter perspectiva de análise. Não existe um tempo preestabelecido. Cinco anos após o fato? 50? A manchete de um jornal de 1960 poderia trazer, na capa, uma matéria de destaque de um acidente que matou dez pessoas, e uma notinha pequena sobre um remédio que poderia controlar a natalidade. Sabemos agora que o que virou história e mudou a história do mundo foi a pílula anticoncepcional e sua revolução de costumes. E isso não é uma questão de tempo ou cobertura midiática. É de perspectiva”, defende.

Pinsky argumenta, ainda, que outro aspecto fundamental do ofício dos historiadores é levar em conta o momento histórico em que a análise é feita. “Por que só agora se fala tanto na história das mulheres, a história no olhar das mulheres? Porque antes não havia um movimento político das mulheres tão amplamente fortalecido como há hoje, um movimento que pode e consegue exigir este estudo. Então toda boa análise histórica deve levar em conta o contexto em que ela é realizada”, defende. “Posso perfeitamente fazer uma história contemporânea, dos anos do governo PT na presidência, por exemplo, ou do que quiser. Mas nada impede que esta história seja revista, analisada sob outro viés, com base em outra documentação”, pondera.

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Fidelidade aos fatos até certo ponto

Conforme explica o cientista político Paulo Roberto Figueira Leal, o fazer histórico é uma forma de conhecimento que não pode e nem deve ser produzido e difundido isoladamente. “Esse exercício implica a necessidade de, permanentemente, utilizar o conhecimento do passado para estabelecer relações com o presente e, sempre que possível, projetar tendências para o futuro. Nesse sentido, os conhecimentos de todas as áreas são mobilizados para produzir análises. Não creio que se possa separar, de forma tão estanque, cada uma das distintas ciências – é no diálogo entre elas e na perspectiva interdisciplinar que se produzem as reflexões mais férteis.”

Apesar da necessidade óbvia de manter a fidelidade aos fatos, documentos e registros, a história está sujeita, até certo ponto, à subjetividade daqueles que a recontam. “A subjetividade é importante, sobretudo no preenchimento de lacunas entre fatos, quando faltam documentos entre o desdobrar de um acontecimento e um fato subsequente. Mas esta subjetividade precisa ser razoável com o contexto à luz de que os fatos vêm sendo recontados, e um historiador sério condicionará isso, necessariamente, à documentação a que teve acesso”, pondera o historiador Ricardo da Costa.

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Aliado a isso, quando a história é tornada “palpável” por meio de livros didáticos, existem, ainda, outros preceitos que regem a relação entre a objetividade dos fatos e o que é impresso. “Geralmente, a organização de um livro parte dos parâmetros educacionais impostos pelo Governo. Um livro didático, por exemplo, obedece ao Currículo Nacional. Não é possível escrever um livro atemporal, porque as interpretações a respeito dos acontecimentos se alteram com a passagem do tempo. Cada sociedade tem uma visão própria dos fatos. Os livros tradicionais, escritos há mais ou menos 30 anos, eram um compilado de datas e fatos, sem relação uns com os outros. Por isso, sua “vida útil” era maior. Atualmente, não é possível escrever materiais assim”, explica o assessor de história da Editora Positivo e professor da disciplina no colégio homônimo em Curitiba, André Marcos de Paula e Silva.

Versões e revisões. Diferentes perspectivas

No curso dos acontecimentos, como vemos agora, é possível observar muitas versões para um mesmo fato, como no debate caloroso sobre o processo de impeachment como golpe de estado ou instrumento democrático legítimo. A polarização da população e a facilidade em disseminar conteúdo (nem sempre informação crível) nas redes sociais também contribui para que haja dificuldade para compreender, de fato, o que se desenrola no presente. Para o cientista político Paulo Roberto Leal, é apenas natural que os acontecimentos sejam abordados por várias e diferentes perspectivas. “E sempre será assim. Estamos falando de narrativas sobre a realidade (e ela sempre pode ser enquadrada por outros olhares). Há, portanto, disputa entre as várias narrativas e, daí, surgem versões mais ou menos difundidas. Trata-se de uma relação que não pode ser compreendida senão como também um jogo de poder”, observa.

Para o diretor editorial da Contexto e historiador, Jaime Pinsky, é possível que, em momentos históricos de extrema dicotomia, existam livros que sigam uma ou outra versão dos fatos. “A história é feita de olhares. Sempre fiz uma analogia com meus alunos. Pedia que imaginassem um elefante no centro da sala, e cada um descrevia, de seu ponto de vista, o que viam. Uns viam a cabeça, outros a cauda, outros os pés, e por aí vai. Mas o que eles viam era sempre um elefante, e nunca um tigre, por exemplo. Existem fragmentos de realidade muito diferentes que compõem um mesmo fato histórico.”

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O assessor da editora Positivo reconhece que erros no registro da História são sempre passíveis de acontecerem, dado seu caráter de ciência “viva” e sujeita a interpretações. “Por mais que especialistas revisem os livros, não há como prever de que maneira, no futuro, os fatos serão interpretados. Tomando como exemplo o Golpe de 64, nos anos que sucederam imediatamente o golpe, havia uma equipe de especialistas responsáveis pela revisão dos livros didáticos e todos mantinham a perspectiva de revolução para o fato”, exemplifica. Para o cientista político Paulo Roberto Leal, o debate e a revisão são processos naturais e necessários ao curso da História, e que deverão nortear, futuramente, o que for escrito sobre os conturbados tempos atuais. “Revisitar o passado, enquadrando-o sob outras perspectivas, é o que garante a incessante necessidade de debate e de contraditório. E em tempo algum haverá consenso absoluto – nem sobre o passado, nem sobre o presente. Em algum momento, a “febre” da irreflexão e do ódio passarão. Talvez aí muitas pessoas poderão fazer um julgamento mais sereno do que estava em jogo nesses dias que vivemos.”

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