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Só nos três primeiros meses do ano, 9 crianças foram assassinadas em Minas

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Violência letal contra crianças dentro de casa expõe falhas na proteção e gera impactos profundos na família e na sociedade (Foto: Freepik)
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“Quando uma criança é vítima de assassinato, mais do que uma vida se perde. É como se rompesse todo o mundo ao redor. É um tipo de dor que não tem nome, não tem preparo e invade todos os espaços da vida”, observa a psicóloga e professora da Estácio Thais Knopp sobre os impactos na família e na sociedade frente à violência letal contra crianças. Em Minas Gerais, onde mais da metade dos casos de crianças mortas no primeiro trimestre deste ano ocorreu nas residências – cinco dos nove homicídios registrados -, a Tribuna se debruça sobre os dados que revelam essa realidade no estado e discute formas de proteção às crianças.

No início deste mês, uma menina de 7 anos foi morta pela própria mãe dentro de casa, em Leopoldina, na Zona da Mata mineira, a menos de 100 quilômetros de Juiz de Fora. O crime ainda não foi incluído nas estatísticas da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), mas será somado aos homicídios de crianças registrados em 2025 em Minas Gerais – número que já supera o do primeiro trimestre do ano passado, quando três casos foram contabilizados. Assim como nas demais ocorrências deste ano, a violência aconteceu no ambiente doméstico e teve um parente como autor. Duas semanadas depois desse caso e a cerca de 20 quilômetros dali, em Cataguases, um homem de 51 anos e o filho de 6 anos foram encaminhados ao hospital da cidade em estado grave, sob suspeita de envenenamento pela madrasta. O caso está sendo investigado como possível tentativa de homicídio. 

Conforme apontam os dados da pasta de segurança, na maior parte dos crimes letais contra crianças, autores e vítimas possuíam algum grau de parentesco. Dos nove registros entre janeiro e março, em sete a relação identificada é filho/enteado ou pais/responsável legal. Em apenas um dos casos não há um tipo de relacionamento e em outro essa categoria é preenchida como relação ignorada. 

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Crianças morrem dentro de casa

A professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras, observa que os atuais estudos sobre violência doméstica contra crianças têm mostrado, com regularidade, a relação entre esses crimes e a parentalidade. Isso porque, em determinada medida, são os pais e os responsáveis que costumam “exercer poder e uma exclusividade na relação com as crianças, que pode impactar em um comportamento abusivo em relação a elas”. Outro aspecto que a professora levanta é a urgência de discussões sobre violência doméstica e sobre a responsabilidade central do cuidador cair sobre mulheres, ocasionando sobrecarga. “A violência é uma discussão multidimensional.”

Para a psicóloga Thais Knopp, “as vivências como traumas precoces, negligências, exposição constante a situações de violência doméstica ou comunitária, dificuldades no controle dos impulsos e transtornos mentais não tratados podem contribuir para o aumento de violência letal contra crianças”. Se por um lado causa estranhamento a violência ocorrer onde se espera que a criança esteja mais segura, por outro, vale pensar como se estrutura a casa.

É o que comenta a pós doutora em Comunicação pela Université de Versailles Saint-Quentin de Yvelines no Centre d”Histoire Culturelle des Société Contemporain, Danielle Ramos Brasiliense. “Precisamos pensar e compreender sem medo que a família, embora tenha há muitos séculos a marca de um símbolo sagrado, também é uma instituição acometida por todas as mazelas do mundo onde ela se consolidou como tal”, argumenta.

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Ela explica que, assim como doenças psíquicas, alienação parental, desigualdades raciais e de classe, homofobia infantil, misoginia e outras disfunções sociais atravessam diversos espaços na sociedade, eles também chegam ao lar. Nesse sentido, é necessário compreender a família tal como outras instituições, explica Danielle.

Impactos dos assassinatos de crianças na sociedade

A pesquisadora não deixa de observar, entretanto, como esses crimes contra crianças – e executados por familiares -, repercute na sociedade, que os considera como os mais terríveis. Esses casos hediondos geram afetação moral e quebra de tabus que constituem os sujeitos como civilizados. “Matar um filho ou os pais é quebrar com esse pacto que é um forte pilar, que se pretende assegurar a nossa existência e permanência no mundo como seres sociais”, esclarece Danielle.

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Danielle tece essa dimensão da discussão para o público e as formas de afetação. Se, por um lado, pode ocorrer a banalização do crime que entra na desvalorização da vida e na normalização da violência, de outro, há o medo simplificando o debate social. “O medo de acontecimentos como esse, que desestabilizam as regras, faz com que a gente se concentre em acreditar num mau superior, numa anormalidade humana, monstruosa ou doentia.” De acordo com ela, é importante lembrar, portanto, que não é um caso de filmes ou séries.

Na dimensão psicológica, o impacto também é um dos pontos centrais e que repercute em todos os âmbitos da vida. “O luto se mistura com revolta, com culpa, com aquele sentimento profundo de impotência. Muitos pais e responsáveis desenvolvem sintomas graves de ansiedade, depressão, insônia e um isolamento emocional que os desconecta do mundo e das relações”, desenvolve Thais. Enquanto na família, a estrutura é abalada e o luto nunca se acomoda, na comunidade, o impacto também é profundo.

“Gera medo, silenciamento e muitas vezes a sensação coletiva de que nada está sob controle. A confiança entre vizinhos diminui. As pessoas se retraem. Em alguns casos, a violência passa a ser encarada como algo inevitável, o que é extremamente preocupante. Quando a gente começa a achar normal perder crianças para a violência, algo muito sério se quebrou na nossa forma de viver em sociedade”, diz. Para ela, é necessário nomear, sentir e enfrentar isso, uma vez que nenhuma criança deveria ter a vida ceifada e nenhuma comunidade deveria ter que aprender a seguir em frente como se fosse parte do cotidiano.

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Responsabilidade social e enfrentamento à violência contra crianças

A segurança de uma criança é responsabilidade da família, da escola e de toda a sociedade, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assim, professores, enfermeiros, médicos, assistentes sociais e outros profissionais podem auxiliar na identificação de supostos abusos de poder parental sobre as crianças. Além disso, vizinhos e amigos podem perceber mudanças de comportamentos ou outras condutas que possam chamar atenção – antes que algum crime seja consumado. É preciso destacar, entretanto, a importância de discernimento em uma possível detecção desses casos.

Dentre as causas elencadas no homicídio de crianças no estado, registradas pela Polícia Militar e que, posteriormente, entram para o banco de dados da Sejusp, estão “sofrimento mental”, “acidente (por negligência)”, “outras causas” e, por fim, o que mais aparece, é o campo “ignorado”. Para além da padronização por categoria  – e ausência dela – Alexandra avalia que não é possível afirmar que os crimes cometidos foram “causados” diretamente por uma conjuntura específica, sem compreender a particularidade deles.

Nesse sentido, vale destacar também políticas públicas para enfrentamento a esse tipo de criminalidade, como a promoção de equipamentos como creches e escolas em horário integral, tão necessárias em realidades onde adultos trabalham 44 horas por semana. “Socialmente, podemos indagar: a redução da jornada de trabalho na sociedade contribuiria para a função de cuidado que a família exerce? Penso que sim. Mais tempo livre poderia ser um estímulo à convivência familiar e outras formas de interação social”, diz Alexandra. Outro aspecto apresentado por ela é a instabilidade econômica, que gera um estado de estresse e de incerteza contínuos, que desestabiliza as pessoas e pode ser uma motivação para a violência.

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Por fim, outros meios de trabalhar o enfrentamento à violência letal contra crianças é criar espaços de formação de diálogo para pessoas que exercem o papel de cuidado. E considerar a criança como um sujeito com a qual se deve estabelecer interação e diálogo, dar atenção às mudanças bruscas de comportamento e dar crédito ao que diz. 

Lei Henry Borel e o enfrentamento jurídico à violência letal contra crianças

O impacto social da morte tão prematura de crianças vítimas de assassinatos gera não só a urgência de políticas públicas, mas novas normativas jurídicas. O aumento de responsabilização nesses casos busca, portanto, coibir a impunidade e aumentar a proteção infantojuvenil. Sobre isso quem fala à Tribuna é o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

“O TJMG tem fomentado ações com foco na justiça restaurativa e na prevenção à violência na primeira infância, além disso, é aderente aos pactos nacionais, à exemplo do Plano Nacional pela Primeira Infância, promovido pelo CNJ, que tem como objetivo fortalecer a atuação precoce do sistema de justiça na proteção de crianças em situação de vulnerabilidade, prevenindo assim a escalada de violências que podem culminar em mortes evitáveis”, esclarece o órgão.

Um caso que chamou atenção pela violência e evitabilidade, e que, inclusive, repercutiu em uma mudança no Código Penal brasileiro foi a morte de Henry Medeiros Borel, de 4 anos, assassinado no dia 8 de março de 2021, no apartamento em Jacarepaguá onde morava com a mãe e o padrasto – vereador do Rio de Janeiro. O crime ainda não foi à júri popular, mas em 2022 deu origem à Lei 14.344/2022, conhecida como Lei Henry Borel, marco no que diz respeito ao enfrentamento à violência letal contra crianças.

A partir desse novo regimento tornou-se crime hediondo o homicídio contra menor de 14 anos, praticado por ascendente, padrasto, madrasta, tutor, curador, guardião ou pessoa que detém autoridade sobre a vítima. Foi inserido também o agravante caso o crime ocorra em contexto de violência doméstica e familiar. 

Outro ponto de destaque da readequação nos enquadramentos penais é a instituição de mecanismos protetivos (análogos à Lei Maria da Penha), aumentando as possibilidades de medidas cautelares cabíveis. “A lei cria obrigações para toda a sociedade. Há o dever de proteção, definindo crimes para quem tem conhecimento dos fatos e não os comunica. Traz responsabilização diferenciada para a sociedade em geral e respostas mais densas para crimes que ocorrerem em ambiente familiar”, avaliou o TJMG.  É importante destacar que crimes contra crianças precisam ter uma resposta imediata em qualquer contexto.

 

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