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Mais de cem jovens são flagrados em trabalho infantil este ano

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Conforme o Ministério do Trabalho e Emprego, em Juiz de Fora foram contabilizados 15 casos no mesmo período avaliado (Foto: Fernando Priamo/ Arquivo TM)
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Nos quatro primeiros meses deste ano, 104 crianças e adolescentes foram identificados em situação de trabalho infantil em Minas Gerais, segundo levantamento da Auditoria Fiscal da Superintendência Regional do Trabalho. A realidade, no entanto, pode ser ainda mais preocupante. Conforme a advogada do Núcleo de Práticas Jurídicas da Estácio, Tamires Oliveira, a taxa é alta, entretanto, ainda é subnotificada. “Se cem crianças foram flagradas, multiplique por muitas vezes mais, só em Minas.”

Considerando o intervalo de cinco anos, entre 2017 e 2022, o número chega a quase mil crianças e adolescentes flagrados trabalhando em todo o estado. Ainda conforme o Ministério do Trabalho e Emprego, em Juiz de Fora foram contabilizados 15 casos no mesmo período avaliado. Não foram fornecidos dados locais referentes a este ano.

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Entre as principais circunstâncias que levam meninos e meninas ao trabalho antes da hora estão a pobreza, a cultura do trabalho precoce e as dificuldades financeiras na família. Embora não se possa delimitar um perfil exato, algumas características são recorrentes. “Famílias com baixa escolaridade, com maior número de filhos, vulneráveis economicamente e consequentemente expostas a desigualdades diariamente”, enumera Tamires Oliveira. Esse cenário acaba por influenciar na evasão escolar e na exposição a demais riscos.

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Parte das crianças identificadas em situação de trabalho infantil no estado desempenham funções enquadradas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Decreto 6.481/2008), como oficinas mecânicas, lava jatos, comércio ambulante, confecção de roupas, padarias, marmorarias, fabricação de móveis, de calçados e de artigos de vidro, entre outras.

O auditor fiscal José Tadeu Medeiros Lima, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho de Minas Gerais, comenta que serão fiscalizadas 120 empresas que contrataram adolescentes, inclusive com carteira assinada, no estado. Após cruzamento de dados entre a idade e a função desenvolvida, foram identificados vários casos em que o adolescente exerce funções, como as de açougueiro, marceneiro, serralheiro, servente de pedreiro e outros cargos que não poderiam ser ocupados por jovens nesta faixa etária. Apesar de a práticas ser proibida, essas informações foram inseridas no sistema do Governo, por meio da carteira de trabalho que oficializa as condições empregatícias.

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Cultura do trabalho precoce

Embora no imaginário social circule a crença de que trabalhar desde cedo previne que a pessoa se torne um infrator, essa versão vem sendo combatida tanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto por especialistas. Para a advogada Tamires Oliveira, essa crença significa, na verdade, uma normalização do trabalho infantil, construída como traço cultural.

De acordo com a professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho Fernanda Barcellos Mathiasi, o trabalho infantil no Brasil envolve uma perspectiva cultural. Nas regiões rurais, por exemplo, explica, é comum entender a prática como uma oportunidade de ingressar no mercado. “Ensina-se a criança a ter um trabalho, considerado importante para ajudar a família. Mas se esquece de trabalhar com essas pessoas a perspectiva mais séria. A partir do momento em que a criança está trabalhando, ela não tem oportunidade de estudar, de ir à escola”, explica. Isso faz com que a condição social e os indicadores sociais daquela pessoa e de sua família se mantenham.

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Na raiz da ‘normalização’ do trabalho infantil está também a crença em mitos que alimentam o ciclo da pobreza, conforme explica o coordenador e auditor fiscal do trabalho, José Tadeu. “É melhor a criança trabalhar do que roubar” é o primeiro mito não condizente com a realidade. Entre esses aspectos existe uma vida, inclusive escolar, para ser desenvolvida, que permitirá o ingresso no mercado de trabalho no tempo certo, avalia.

“Dê trabalho para a criança não dar trabalho”, reproduz José Tadeu, destacando que a ideia passou a ser desconexa, principalmente na atualidade. “Se antes a pessoa com pouca escolaridade conseguia emprego, no cotidiano não é mais assim. O mundo do trabalho exige mais qualificação, então as chances de quem entra no trabalho precoce conseguir acesso a melhores condições de vida são menores.” Outro agravante é que o trabalho infantil expõe a riscos físicos e de aliciamento. “O trabalho precoce provoca evasão escolar, que culmina na falta de escolaridade básica, o que, mais tarde, influencia na falta de profissionalização e, por fim, provoca subemprego ou desemprego”, explica José Tadeu sobre o ciclo da pobreza.

Campanha alerta para riscos de normalização da prática

A Fundação Abrinq, organização sem fins lucrativos em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes, criou neste ano uma campanha contra o trabalho infantil que busca mexer com a concepção normalizada desse tipo de prática. Na página da entidade, foi criada uma simulação de empregos destinados aos jovens. Mais do que as possíveis vagas, os classificados também apresentam as consequências da submissão a esse tipo de prática. Por meio de artifícios como o choque, a fundação busca provocar incômodo com a normalização, atingindo outros níveis de exposição.

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A Abrinq, por meio de nota, explica que a proposta está atrelada, sobretudo, à proposta de gerar reflexão. “Esperamos mobilizar a sociedade e conscientizá-la sobre a importância do tema, afinal, mais de 1,7 milhão de crianças e adolescentes estão expostos ao trabalho infantil no Brasil, colocando em risco o desenvolvimento, a saúde e a proteção deles.”

Trabalho infantil revela passado não superado do país

Enquanto o trabalho infantil avança no mundo, o pacto para erradicar o trabalho infantil até 2025, previsto no Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (2019-2022), torna-se um desafio a ser enfrentado. “O Estado possui um cultivo significativo do agronegócio e é um dos maiores estados em extensão com uma população humilde”, explica a advogada Tamires Oliveira. Ela evidencia que a intersecção desses fatores faz com que exista uma cultura da exploração perpetuada, em que as crianças acabam sofrendo com esses reflexos. Mas não apenas elas.

Pesquisa da Organização Internacional do Trabalho identifica que o histórico do trabalho infantil aparece associado a trabalhadores que mais tarde, já adultos, foram encontrados em condições análogas a escravidão. De acordo com o estudo, 92,6% das vítimas de trabalho escravo começaram a vida profissional ainda crianças ou adolescentes.

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Políticas públicas como aliadas

Na busca pela erradicação do trabalho infantil, que consiste em retirar crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos de situações de trabalho, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) destaca que eixos estratégicos devem ser desenvolvidos nos municípios.

Como parte dessas ações está a realização de campanhas educativas relacionadas ao tema, capacitações de equipes técnicas dos serviços públicos, acompanhamento nos Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), articulação de órgãos de fiscalização, responsabilização de empresas que se envolvem em cadeias produtivas com mão de obra infantil, diagnósticos que identifiquem características desses tipos de trabalhos e atendimento às famílias que possuem crianças nessas situações.

De acordo com a professora Fernanda Barcellos Mathiasi, a população também pode ajudar no combate ao trabalho infantil. Além de não fomentar esse tipo de prática consumindo eventuais produtos vendidos por essas crianças, entrar em contato com canais de denúncia também é um meio de coibir essa ação. Basta ligar para o Disque 100 ou entrar em contato com o Conselho Tutelar.

A Constituição Federal afirma que é dever da família, da sociedade e do estado dar proteção integral ao adolescente com absoluta prioridade. “É a única vez que a Constituição Federal fala em prioridade absoluta”, aponta o auditor José Tadeu, ao destacar que é esse o lugar que a criança ocupa no mundo.

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