Apesar de produções com personagens que praticam ou sofrem stalking (perseguição) não serem novidade nas telas, o sucesso da série Bebê Rena (Baby Reindeer, em inglês), lançada pela Netflix no mês passado, reascendeu a discussão sobre o tema e levantou curiosidades – talvez por retratar uma situação real vivenciada pelo próprio ator Richard Gadd, que vive o personagem Donny. Considerada crime no Brasil desde 2021, a perseguição já acumula números surpreendentes: só no ano passado, houve média de mais de 14 denúncias por dia em Minas, totalizando 5.200 ocorrências, conforme dados do Observatório de Segurança Pública. O número é quase 40% superior aos 3.725 registros de 2022. A tendência em 2024 continua sendo de crescimento no estado: no primeiro trimestre foram registradas 75 perseguições a mais do que no mesmo período de 2023, totalizando 1.322.
O psiquiatra do Espaço Calmamente David Sender explica que a perseguição está ligada a um comportamento obsessivo e não é considerada um transtorno mental, embora alguns perseguidores possam ter essa condição. Mesmo com a tendência das séries e filmes de romantizar a questão, o médico elogia Bebê Rena, pela forma mais humanizada como descreve a stalker Martha (Jessica Gunning). “Foi a primeira apresentação sobre stalking que eu vi que mostrou o quão doente, carente e isolado é um stalker. Em geral, vilanizam o perseguidor sem demonstrar que são pessoas, na maior parte das vezes, adoecidas. A Martha não era exclusivamente perversa, era doente.”
Segundo David, existem alguns perfis que podem estar envolvidos nesse tipo de comportamento: em tese, sem nenhum transtorno mental; com alguns transtornos mentais temporários, que podem gerar esse tipo de reação; e com transtornos mentais graves (perfil mais desorganizado de stalker). O paciente psicótico, aquele que tem rompimento com a realidade, pode, por exemplo, desenvolver a chamada erotomania: convicção delirante de estar sendo amado por alguém de posição social muito proeminente. “O típico quadro de erotomania envolve, geralmente, mulheres, que acreditam que alguém de uma classe social muito mais alta ou alguém famoso, com muitos recursos, está completamente apaixonado. E a pessoa acaba moldando a vida dela a partir disso”, observa o psiquiatra. “Nesses casos muito particulares, a obsessão dura mais tempo. Mas, em geral, os quadros de stalking são autolimitados. Na maior parte das vezes dura um ano (mais de 50%), enquanto cerca de 25% duram de dois a cinco anos, sendo esses normalmente quadros psicóticos.” Apesar de ser diferente da erotomania, no amor obsessivo também costuma haver um componente delirante, conforme o especialista.
Mulheres perseguidas por ex concentram perigo de violência
Já os transtornos de personalidade, como boderline, histriônico, narcisista e antissocial, podem estar envolvidos de diversas maneiras em ocorrências de perseguição. “Mas os principais casos de violência são os de mulheres perseguidas por ex”, dispara o psiquiatra David Sender, sobre o risco a que potenciais vítimas de violência doméstica estão expostas diante de um quadro de stalking, que pode chegar ao extremo do feminicídio. “No dia a dia temos perseguidores reais. Conhecemos muitas pessoas que foram perseguidas e pessoas que vão perseguir outras. E as estatísticas mostram que 90% das vítimas de feminicídio foram perseguidas antes.”
O risco de agressão é ainda maior, segundo David, quando envolve perseguidores que abusam de álcool ou de outras substâncias. “São fatores de risco para que esse comportamento de stalking passe a um ato de violência.” Ameaça prévia também não deve ser desconsiderada, alerta o especialista. Sobre os casos em que a perseguição chega a familiares, amigos ou cônjuges das vítimas, ele analisa: “Uma vez que não consegue atingir o alvo diretamente, (o stalker) vai buscar os caminhos colaterais para isso. Numa esperança, muitas vezes psicótica ou disfuncional, de que vai conseguir estar perto da pessoa, ele vai por outros caminhos. É uma medida de desespero, porque é uma situação obsessiva”, pontua, destacando se tratar de um assédio psicológico grave.
Levando isso em conta, o médico vê com muito bons olhos o fato de a perseguição ter se tornado crime no Brasil desde 2021. De acordo com o artigo 147- A do Código Penal, “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”, prevê pena de reclusão, de seis meses a dois anos, e multa. A pena é aumentada se o crime for cometido contra criança, adolescente ou idoso ou contra mulher por razões da condição de sexo feminino.
JF teve média de 20 perseguições por mês
Juiz de Fora segue fluxo contrário ao de Minas, com decréscimo das ocorrências de stalking: Houve 194 no ano passado, enquanto em 2022 foram feitas 202 comunicações do crime. No primeiro trimestre deste ano o acúmulo é de 38 registros – média de 12,6 casos por mês apenas na cidade, enquanto nos três primeiros meses de 2023 foram 61 casos ou cerca de 20 perseguições a cada 30 dias. Já na 4ª Região Integrada de Segurança Pública (Risp), que engloba Juiz de Fora e outros 85 municípios do entorno, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) contabilizou aumento de 14,8% no último ano, passando de 357 notificações, em 2022, para 410, em 2023. Já no primeiro trimestre deste ano houve queda de 21,5%, com 95 casos contra 121 no período anterior correspondente.
Em uma das ocorrências, registrada em Juiz de Fora no dia 29 de fevereiro, uma mulher, de 31 anos, moradora da Zona Nordeste, denunciou que seu ex-companheiro, 53, constantemente a persegue e a vigia, além de enviar mensagens de forma insistente. Naquela data, ele a observou da calçada e logo depois enviou mensagens, com ameaças de que ela iria perder a guarda da filha. A vítima desabafou ter medo do homem, já que ele teria arma de fogo e insiste em reatar o relacionamento.
Como denunciar?
As características principais de um stalking, de acordo com o psiquiatra David Sender, são: comportamento invasivo e intrusivo, ameaçador e que causa medo na vítima. “Não basta, por exemplo, a pessoa seguir, curtir todas as fotos no Instagram e mandar mensagens todos os dias. Em geral, além de se aproximar da pessoa, o stalker necessariamente tem que gerar algum tipo de ameaça ou grande incômodo em quem está sendo stalkeada. É comum que mande carta, e-mail, apareça na casa da pessoa, espere ela sair. Alguns tentam agradar, mas podem ir para o lado negativo, como entrar com processo, fazer denúncias frívolas e ameaçar terceiros.”
Por outro lado, as vítimas sofrem as consequências. “Tudo o que gera um estresse crônico provoca risco de adoecimento. O stalking gera uma sobrecarga, um estresse, uma preocupação e um medo muito grande e constante. Na medida em que isso começa a invadir a vida da pessoa, ela começa a ficar com medo de sair de casa, tem que ficar bloqueando a pessoa, fazer BO, e a coisa não para”, detalha o médico. “Se a pessoa não tiver medidas protetivas, tanto sociais (de amigos e familiares), quanto jurídicas, principalmente para pacientes que já têm fatores de risco, o estresse crônico pode levar, além da depressão, ao transtorno de ansiedade e ao estresse pós-traumático.”
Diante disso, é de suma importância que as vítimas se resguardem de todas as formas, procurando os postos da Polícia Militar e as delegacias da Polícia Civil para registrar boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas cabíveis. Vale lembrar que os inquéritos de perseguição só correm mediante representação da vítima na delegacia, então não basta fazer o BO se quiser levar o caso adiante.
Já o tratamento de um perseguidor depende. “Se for de natureza psicótica, psiquiatria e medicamento são fundamentais. Às vezes a obsessão não vai embora, mas o comportamento vai. No caso da bipolaridade (transtorno de humor), o stalking costuma ser passageiro, e a pessoa volta ao normal”, conclui o psiquiatra.