Trinta e cinco mil pessoas. Este é o tamanho da multidão que planeja passar o último dia do ano na principal corrida de rua da América Latina. Há 95 anos, a Corrida de São Silvestre é um rito de passagem para o novo ano de muitas pessoas, independentemente da nacionalidade. Mais do que isso, a prova é um marco de superação e renovação, como é o caso da educadora física Patrícia Lisboa, de 44 anos. Em 2015, a corredora sofreu uma lesão na patela por excesso de treino, no momento em que cruzou a linha de chegada de uma prova de montanha e deu um salto para comemorar. Corredora amadora, ficou quase três meses imobilizada e hoje ainda apresenta menos força na perna lesionada. Mas isso não impediu seu sonho de voltar a correr.
“Desde pequenininha, eu assistia a São Silvestre com meu pai, enquanto comia milho verde. Era uma tradição. Quando me lesionei e tive que parar com tudo, meu pai falava ‘vou te ver lá’. Passados quatro anos de lesão, em março, recomecei a correr trail, fiz oito corridas na temporada, todas com até 10km de percurso. Então, pensei: por que não fazer a prova agora e dedicar ao meu pai?”, conta a educadora física que irá participar da São Silvestre pela primeira vez e pretende ser vista na televisão. Na mala, ela levará uma faixa que exibirá em homenagem ao pai, Cláudio Afonso da Fonseca, de 80 anos, seu maior apoiador. “Acho que para ele essa prova é um marco de um novo ciclo ou uma vitória”, reflete a juiz-forana, que convidou uma amiga, Liamara Scortegagna, para acompanhá-la nessa empreitada.
Relembrando o papel do pai em sua recuperação, Patrícia se emociona.
“Ele é sensacional, acho que sou assim (forte) por causa dele. Eu sabia que ele estava sofrendo comigo e eu dizia que estava tudo bem, mas ele sentia que não estava. E quando eu estava cabisbaixa, ele dizia: ‘minha filha, você é sensacional, você vai se recuperar e voltar a correr’. Ele não baixava a peteca hora nenhuma”.
Praticante de esporte desde a infância, para ela, a corrida é um prazer pela saúde e pelo bem-estar que promove, uma válvula de escape. Essa lição ela tenta, hoje, passar a seus alunos de personal, como já passou a atletas e paratletas que treinou por cinco anos no Clube Bom Pastor.
Apesar de acreditar que a lesão deve acompanhá-la ainda por muitos anos, a educadora física conta que atualmente se sente muito melhor e continua o tratamento. Para a São Silvestre, ela se prepara desde o início do ano, com musculação e fisioterapia, além de treinos na via São Pedro e na UFJF.
Em São Paulo, Patrícia ainda precisará do auxílio de uma faixa protetora para não forçar o joelho, mas, mesmo que haja dor, ela acredita que sua alegria pode superar qualquer incômodo. “Vou pensar no meu pai o tempo inteiro, em tudo que eu passei. Cruzar o pórtico será como um troféu, o fechamento de um ciclo, a realização do sonho do meu grande herói.”
Uma tradição de 18 anos
Entusiasta da São Silvestre há 18 anos, o advogado Rubens Gabriel, 45, também guarda uma história de autossuperação. Tendo tido no passado um grave problema com álcool e drogas, viu no atletismo uma forma de se desfazer do vício. Na época, em 2002, sua mãe, que hoje tem 77 anos, foi quem mais acreditou na sua capacidade.
“Algumas pessoas disseram para mim que eu não conseguiria correr os 15 quilômetros, por causa da vida que levava anteriormente. Então treinei por conta própria e consegui correr. Quando atravessei a linha de chegada, fui até o hotel e liguei para a minha mãe chorando, agradecendo pelo apoio”.
Tamanha foi sua emoção com a primeira prova paulista que surgiu ali uma promessa. “Enquanto tivesse saúde, eu participaria. Todos os anos seguintes foram muito emocionantes, porque é uma corrida tradicional e a mais esperada do ano”.
Hoje a mãe continua torcendo pelo filho e, desde que ele começou a se fantasiar há quatro anos, ela consegue vê-lo na televisão. “Ela fica emocionada. Para ela é uma grande vitória independentemente da classificação que eu fique, pois ela vê o esporte como sinônimo de uma nova vida. Nas primeiras vezes eu não aparecia (na TV), por ser muita gente, mas há quatro anos corro fantasiado de Mulher Maravilha e chama a atenção da TV. Esse ano quero mudar, estou em dúvida de que herói vestir. A alegria de correr fantasiado é porque consigo enxergar a corrida com outros olhos. Antes eu corria para fazer um tempo mais rápido, hoje corro para curtir a prova e me emocionar a cada quilômetro”, conta.
Na época em que se dedicava em superar marcas, Rubens chegou a atingir seu melhor tempo em 2006, completando os 15km em 56min52s, chegando em 387º lugar geral e 68º na faixa etária 30-34 anos.
“As pernas tremem como na primeira vez”
Nessas quase duas décadas de tradição, o atleta amador desenvolveu seu próprio ritual de ano novo. “Cada vez faço minhas orações, agradeço pelo ano que tive e peço forças para no próximo me manter afastado da bebida e das drogas. É lá que tudo se renova”, destaca, revelando o quanto a experiência de cada prova é indescritível, independente de quantos anos se passem. “Quando chego na hora da largada, no meio daquela multidão, é de arrepiar. As pernas tremem como na primeira vez.”
Enquanto no primeiro ano Rubens foi com uma excursão, a partir da segunda edição, ele mesmo se organizou para levar corredores a São Paulo. Este ano, 45 pessoas irão acompanhá-lo, inclusive o atleta de elite Eberth Silverio, 22º colocado geral na edição passada. O grupo viaja para a capital paulista neste domingo (29), onde irá aguardar até a largada, na manhã do dia 31, a partir de 7h25. “A corrida para mim é sempre um incentivo à saúde e à longevidade. É o que me move”, afirma Rubens, que, tendo despertado a paixão pelo atletismo, depois da primeira prova, nunca mais parou de correr e competir.