Há dois anos, Marcelina do Nascimento, 38, certamente não fazia ideia da felicidade que a aguardava. Uma reviravolta em sua vida gerou a retomada de movimentos do corpo em geral e a volta da utilização dos músculos para sorrir. Portadora de paralisia cerebral congênita, a juiz-forana conseguiu recuperar o funcionamento da área cognitiva, mas vive com sequelas que reduzem sua cinesia. Logo, realizou, desde os 6 anos de vida, seis cirurgias ortopédicas corretivas, com trabalho de fisioterapia por dez temporadas. Trabalhou dos 13 aos 33 anos – idade do falecimento de sua mãe, fato que a impactou novamente.
“Percebi que comecei a perder os movimentos do corpo. Todos os que eu havia adquirido com aquele tratamento inicial. Em busca de respostas, levei um exame de ressonância ao médico, que me disse que não tinha jeito e que eu iria parar de andar”, relembra Marcelina, momentos antes de sua vida seguir outro caminho.
“Me revoltei. Costumo dizer que em uma discussão que tive com Deus, pedi que me desse algo para fazer que eu pudesse utilizar a minha força e o meu corpo. Que ocupasse o meu tempo, porque não aceitava, de jeito nenhum, ter que retroceder àquela situação do meu nascimento. Foi quando eu vi uma chamada no programa da Fátima Bernardes contando a história do Jiu-Jítsu na Estrada (iniciativa de um casal que deu uma volta no Brasil visitando projetos sociais de jiu-jítsu e parajiu-jítsu). De imediato senti que aquilo era para mim. Vi matérias falando sobre o parajiu-jítsu e, conversando novamente com Deus, disse que se existisse alguém com a mesma deficiência que eu, que eu iria entrar no esporte. Aí o Alan Rinêr e o Emanuel Gaúcho entraram na história, me colocaram em um grupo de parajiu-jítsu, e, nele, eu conheci Thamires Sasahara, que também possui sequela de paralisia cerebral. Aí tive a certeza absoluta que foi uma resposta que Deus encaminhou para mim. Começou, então, uma saga pela busca de academia”, rememora.
Uma nova vida no tatame
Há aproximadamente um ano e três meses, Marcelina treina jiu-jítsu na Grappling Fight Team (CF Team), assessorada pelos mestres Flávio Salles e André Santos, e colhe os frutos da prática desportiva diariamente, com três aulas da arte marcial por semana, além de sessões de fisioterapia e musculação, durante dois dias da semana, cada.
“Enfatizo que tem uma diferença muito grande daquela Marcelina que passou pela roleta. Quando passei pela catraca, minha vida mudou totalmente. Quando cheguei no tatame vi que era aquilo mesmo. Se tivesse como eu viver aqui dentro, dormir aqui… vivo 24 horas o que eu faço, o jiu-jítsu. Paralelamente a isto tudo, consegui conquistar um bom atendimento de fisioterapia, musculação adaptada, nutricionista e apoio com a suplementação de pessoas que apoiam a causa”, exalta a paratleta.
A evolução foi tamanha que Marcelina disputou, neste mês, a primeira edição do Campeonato Brasileiro de Jiu-Jítsu Paradesportivo, em Florianópolis (SC). Não fosse o bastante, conquistou, ainda, medalhas de prata e bronze após lutas nas classes funcionais A (amputados) e K (cadeirantes), que lhe permitiram, ainda, lutar na categoria L (pessoas com sequelas de AVC). “Fiquei muito feliz com o resultado. Inesquecível, imensurável. Estou feliz de verdade”, comenta Marcelina.
Com o sorriso no rosto, a juiz-forana não titubeia ao mensurar a representatividade do esporte para si. “Depois da perda da minha mãe, foi a maior conquista que obtive na minha vida. É minha segunda casa, minha razão de vida, meu coração batendo de volta quando estou no tatame, graças a Deus.”
Adaptação, entrega e evolução maior que no jiu-jítsu convencional
“Estou muito feliz de saber que, depois desse um ano, não estou mais sozinha. Antes era só eu. Hoje somos seis. E é um orgulho enorme dizer que deles, três estiveram presentes no Brasileiro, juntamente com o sensei Flávio e o sensei André Santos.” O relato emocionado de Marcelina traz a menção dos mestres da GF Team e dos companheiros paratletas Oriene Sabino, 34, de lesões do plexo braquial, conjunto de nervos que conduz sinais da medula espinhal para os membros superiores, e Henrique Surerus, 48, com amputação congênita do braço direito, dupla também medalhista no nacional em tatames catarinenses. A partir, também, de Marcelina, a equipe e o jiu-jítsu paradesportivo em Juiz de Fora crescem de forma gradativa.
O mestre André Santos, 45 anos, envolvido no meio das lutas desde os 8 na capoeira, muay thai, boxe, kickboxing e jiu-jítsu, além do MMA, conta que “o primeiro momento de contato foi um desafio, por sabermos tantas coisas do modo convencional, para pessoas que não portam deficiência, e ter que adaptar. E, depois disso, dizer para eles que sim. E esse sim não é pelo físico ou destaque na luta, mas pelo sorriso. Porque é bom você colocar seu conhecimento para alguém que não sabia nem sorrir, às vezes, porque sempre ouviu o não das pessoas. O principal de tudo é trazer vida para eles.”
A atenção para com os atletas deve existir, primeiro, fora do espaço do tatame, como destaca o mestre Flávio Salles. “O parajiu-jítsu é pensado dia a dia. Quando o atleta chega, temos que perguntar como foi o seu dia, se está lesionado, se sentiu alguma coisa. Se a pessoa estiver legal, vamos adaptar os golpes do convencional e até inventar alguns. Mas os treinos não têm um padrão. Dependendo do grau de deficiência, cada problema que o paratleta tenha tido atrapalha bastante. E quando abordamos o jiu-jítsu paradesportivo, falamos, primeiro, em qualidade de vida. Melhorar seus movimentos, se virar em uma situação de risco, como defesa pessoal. E, para quem gosta, competir.”
Os resultados aparecem a cada instante. “Percebo uma evolução maior no paratleta do que no convencional. Porque a dedicação deles é diferente. A limitação obriga a se dedicarem. Já no convencional, muitas das vezes você passa um golpe ou tipo de posição e não querem repetir, acham que já está bom. O paratleta, por sua vez, sabe que se não repetir, não vai guardar. Por exemplo, uma pessoa com paralisia cerebral pode esquecer em uma hora o movimento que pedi. Então ele já tem a consciência que precisa repetir e virar automático”, destaca André Santos.
Falta de apoio prejudica os paratletas
Vivendo a arte marcial 24 horas por dia, mas sem patrocínio ou suporte financeiro, Marcelina ainda desabafa. “Por exemplo, nesta viagem que fizemos para Florianópolis, o gasto foi individual de cada atleta. É de suma importância o apoio de empresas ao esporte paradesportivo. A falta do patrocínio financeiro é um fator que dificulta muito o desenvolvimento e o destaque do esporte, levando em consideração que a pessoa com deficiência tem a lei de incentivo ao esporte paradesportivo, mas infelizmente a lei de incentivo ao esporte em Juiz de Fora só contempla, no momento, o futebol. Precisamos da atenção das autoridades. Temos destaques em diversas modalidades. Peço o carinho da cidade para nos acolher, porque o parajiu-jítsu juiz-forano tem trazido medalhas, mesmo com pouca visibilidade.” Os interessados podem entrar em contato com o mestre Flávio, pelo número (32) 98819-7101.