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Heleno de Freitas 100 anos: ‘Um demônio em campo, mas um santo em família’

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“A minha mãe, com medo, nos mandava trancar a porta do quarto, mas nunca trancamos nada. Vê se a gente tinha ideia de trancar o quarto por causa do tio Heleno se a gente gostava dele à beça? O tio Heleno ficava olhando o Lalado, meu irmão mais novo – na época, da idade de Luiz Eduardo, seu filho -, dormir. Ficava olhando o Lalado e ia cobri-lo. Acho que sentia saudades do filho. O tio Heleno era doido, mas sabia que tinha um filho, que era separado”, relata Herilene de Freitas, 78 anos, sobrinha de Heleno de Freitas (1920-1959). Entre 1952 e 1954, Herilene, aos dez, e os irmãos Helenize, Helsiane e Lalado (Heraldo Filho) conviveram diariamente, em São João Nepomuceno (MG), com o tio, ainda sem o diagnóstico da sífilis. Os quatro filhos não impediram que Heraldo de Freitas levasse o irmão, sob seus cuidados, novamente para a terra natal.

Morto em 8 de novembro de 1959 em decorrência da evolução da sífilis, Heleno encontra-se enterrado em São João Nepomuceno, onde é nome de estádio, rua, ginásio poliesportivo e torneio amador. No seu centenário, comemorado nesta quarta-feira (12), Herilene relembra as estórias vividas com o tio, inimagináveis ao jogador descontrolado. “Vivemos tudo aquilo. Nós brincávamos com ele, porque o tio Heleno era uma criança. Como o pai saía meio-dia para trabalhar, ele dizia: ‘Filhinha, vê se seu pai já virou a esquina’, porque nós jogávamos gamão, buraco etc.. E o pai não gostava de jogos de aposta. A gente então ficava brincando com o tio Heleno. Eu nunca, nunca vi ele fazer nenhuma gritaria. O tio Heleno era um demônio no campo, mas um santo com a família. Por isso custamos a aceitar que ele estava doente. A vovó, por exemplo, não aceitava. Já o meu pai desconfiava”, revela Herilene.

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Heleno na praia de Copacabana, um de seus locais prediletos (Foto: Arquivo O Cruzeiro)

À época, Heleno não fazia sombra ao irascível artilheiro do Botafogo, tampouco ao doutor Heleno de Freitas – ele se formou em Direito paralelamente à carreira de jogador – que tinha mesa reservada em cassinos cariocas. Mas não importava às sobrinhas. Helenize de Freitas, 75, assim como a irmã Herilene, guarda lembranças afetuosas de Heleno. “Ele era muito carinhoso com a gente. As lembranças que tenho são boas. (…) O tio Heleno tinha uma mania de estender o braço como se tivesse mostrando o muque: ‘Vem cá, filhinha, balança aqui, balança aqui’. Mas sabíamos que ele brigava. Eu joguei voleibol durante muitos anos e também não gostava de perder. Às vezes eu virava o diabo dentro de uma quadra. Só que eu sabia perder; o tio Heleno não. Era o temperamento dele. Realmente já era doente. Era a sífilis que estava avançando.”

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O estado de saúde de Heleno perturbava o irmão Heraldo. De crendices a crenças, Heraldo tentara de tudo para curá-lo. “O meu pai fazia muito exercício com o tio Heleno, porque achava que a sífilis seria eliminada pelo suor. Tinha essa história. Eram atividades físicas como pular corda e correr. Papai fazia de tudo. Até virar espírita, virou.”

Por conta de viagens enquanto jogador do Botafogo, do Boca Juniors, da Argentina, do Júnior, da Colômbia, e da seleção brasileira, Heleno colecionava pertences de toda a natureza e de diferentes nacionalidades. Ao ir para São João Nepomuceno, os objetos faziam volume em uma mala. Herilene e Helenize só tinham olhos para as coleções do tio. “Lembro que o pai tinha uma mala grande onde guardava os pertences do tio Heleno, como moedas, notas, recortes de jornal, relógios, fotos, isqueiros, chaveiros etc.. Papai falava: ‘Vocês podem brincar com tudo, mas quando Luiz Eduardo completar 18 anos, vou entregar tudo para ele.’ E brincávamos com aquilo. Adorávamos. Quando o Luiz Eduardo fez 18, o pai entregou tudo para ele”, recorda Helenize. Heleno teve apenas um filho, Luiz Eduardo de Freitas, fruto do curto casamento, entre 1948 e 1950, com Ilma Miranda Corrêa Lisboa.

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‘Heleno não era indigente’

Antes de retornar para São João Nepomuceno, Heleno de Freitas havia passado por um tratamento traumático em uma clínica psiquiátrica particular no Rio de Janeiro. O jogador foi colocado em camisa de força e submetido a choques elétricos na cabeça e injeções de cardiazol, o que, por fim, agravou o seu quadro. Não reconheceu a própria mãe, Dona Miquita, em uma visita. O destino guardava ao quarto maior artilheiro da história do Botafogo, com 204 gols em 233 jogos, disputados entre 1937 e 1948, ser cobaia de tratamentos psiquiátricos de inúmeras metodologias, válidas ou cruéis. “Foi um tratamento muito doloroso, errado e que começou bem tarde”, destaca Herilene.

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Heleno, formado em Direito, também era reconhecido por seu estilo (Foto: Reprodução do livro ‘Nunca houve um homem como Heleno’)

Em 1954, apesar da boa convivência com as sobrinhas, Heraldo perdera as esperanças quanto à recuperação do irmão após recomendação médica. Mesmo debilitado, Heleno aprontava das suas. De pegar uma motocicleta emprestada e descer o morro da Igreja Matriz com os braços abertos a pedir a crianças para comprar éter na farmácia. Heraldo chegara a proibir o farmacêutico de vender éter para o irmão, viciado. Heleno fora então internado na Casa de Saúde São Sebastião, em Barbacena. “Quando o tio Heleno foi embora para Barbacena ser internado, eu tinha 12 anos. Ele virou e me disse: ‘Filhinha, só pede ao seu pai para que não deixe que eles me deem aquele choque de novo. Não quero mais tomar choque.’ Ele deve ter sofrido muito neste tratamento do Rio de Janeiro. Foi uma pena. Ele era uma pessoa muito boa. Se tivesse um remédio próprio… ele foi uma cobaia na mão de todo mundo”, lamenta Herilene.

Herilene, entretanto, contesta as informações veiculadas à época de que o tio estava internado na casa psiquiátrica como indigente. De acordo com a sobrinha, o pai Heraldo e o tio Oscar de Freitas custeavam o tratamento de Heleno de Freitas em Barbacena. “Em uma reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 1996, o Doutor José Tolendal, proprietário da clínica, falou tudo sobre o meu pai, quantas cartas ele escrevia para o tio Heleno. Naquela época, era tudo mais difícil. O Doutor Tolendal conta a história, só que naquela época o meu pai já tinha morrido. E meu pai tinha nos proibido de ler qualquer notícia sobre o Heleno, porque todas diziam que ele estava internado como indigente, jogado em uma casa em Barbacena. Nunca foi verdade”, questiona.

De acordo com o biógrafo Marcos Eduardo Neves, autor de “Nunca houve um homem como Heleno”, cuja terceira edição, da editora Museu da Pelada, estará nas livrarias em março, Tolendal fora fundamental para Heleno no fim de sua vida. “O Heleno teria apenas dois anos de vida na clínica. Ele ficou lá por cinco anos. No sanatório, ele virou uma espécie de cobaia humana. Eles tentavam de todos os tratamentos possíveis para ver se algum pegava e ele conseguia melhorar. Mas, no fundo, o Heleno passou por tudo. (…) O Tolendal era um cara que estudou com ele, era de São João Nepomuceno também, então o Heleno era um ídolo para o Tolendal; ele acaba cuidando do ídolo. O Tolendal cuidava do Heleno como se fosse um filho. Uma das coisas que ele fez foi dar ao Heleno o prazer de jogar bola.” Em 1956, Heleno de Freitas disputou uma partida pelo Olympic Club, de Barbacena, durante o tratamento.

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Visitas

Conforme Herilene, ela visitou Heleno por duas ocasiões em Barbacena, ainda que Heraldo não tenha deixado ela manter nenhum contato com o tio. “O médico não deu nem dois anos, porque o tratamento havia começado tarde. Quando fui visitá-lo, ele já estava muito doente. Eu só o vi quando ele estava em um pátio. Meu pai disse: ‘Olha, você vai olhar somente daqui. Não vai entrar.’ Eu nem falei com o tio Heleno. Só fiquei o observando do lado de fora no pátio. Lembro que não falei com ele.”

‘Como jogador, foi muito maior do que pensamos’

Estátua em São João Nepomuceno é uma das diversas homenagens a Heleno de Freitas (Foto: Nei Medina/Arquivo pessoal)

A carreira meteórica de Heleno de Freitas fica à revelia do volume de estórias protagonizadas por Heleno, seja dentro ou fora de campo. Do amador Mangueira Futebol Clube, de São João Nepomuceno, ao América Futebol Clube, do qual vestiu a camisa por 25 minutos, em sua estreia no Maracanã, em 1951, contra o São Cristóvão. Deixara o gramado do Maracanã expulso por atitude antidesportiva contra os próprios companheiros para nunca mais jogar futebol. Das categorias de base do Fluminense ao Vasco da Gama, clube pelo qual conquistou o único título da carreira – Campeonato Carioca de 1949 – e em que apanhou de Flávio Costa ao sacar um revólver para o ex-técnico. O são-joanense ainda aventurara-se por Argentina e Colômbia.

Para Marcos Eduardo Neves, Heleno de Freitas foi, como jogador, muito maior do que a crônica esportiva lembra. “O Heleno não chegou a disputar nenhuma Copa do Mundo. Então, como jogador, ele poderia ser maior. Na Copa de 1938, tivemos o Leônidas como artilheiro. Na Copa de 1950, tivemos o Ademir de Menezes. Entre 1938 e 1950, não tivemos Copa. Nas duas, o Heleno poderia ser o artilheiro. Tanto em 1942 quanto em 1946, anos em que estava no auge no Botafogo. Se hoje qualquer criança que gosta de futebol for pesquisar sobre as histórias das Copas e ver quem foram os artilheiros de cada uma, veria duas vezes o nome de Heleno de Freitas caso os torneios de 1942 e 1946 tivessem acontecido. Como jogador, ele foi muito maior do que imaginamos.” Em 1950, embora estivesse em atividade, Heleno de Freitas não fora então convocado pelo desafeto Flávio Costa.

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Conforme o biógrafo, antes de se interessar pela vida de Heleno de Freitas, conhecia o jogador apenas como “um ídolo do Botafogo nos anos 1940 que morreu louco e não ganhou título algum pelo clube”. “Era tudo o que eu sabia. Heleno é o cara que viveu dez anos a mil. Ele morreu cedo, mas viveu tudo o que poderia em termos de fama, mulheres, prazeres, reconhecimento, sucesso, etc., a ponto de, 60 anos após a sua morte, estarmos falando sobre a morte dele. Então, imagina o que seria Heleno à época? Era um tufão.”

O amor de Heleno pelo Botafogo também foi destacado pelas irmãs (Foto: Reprodução do livro ‘Nunca houve um homem como Heleno’)

Para Herilene, o que o tio deixou para os sobrinhos e ao restante da família foi a paixão pelo esporte. “Tanto o meu pai quanto a minha mãe gostavam. Sempre nos incentivaram no esporte. E para fazer o melhor possível e bem feito. Não fazer de qualquer jeito. O tio Heleno tinha um amor pela camisa, pelo Botafogo. Era tudo na vida dele. E isso ficou com a gente. Quando vamos fazer esporte, fazemos para valer. Sou campeã mundial de natação. Foi uma coisa que ele deixou para mim e para a Helenize também. E todos os meus irmãos gostam de esporte, jogam tênis, vôlei etc..” Helenize, que se enveredou pelo vôlei, lembra também do primo Bebeto de Freitas. “Jogamos juntos no Sul-Americano de Caracas, em 1969, onde fomos campeões e fizemos a dobradinha. Ele jogava pelo Botafogo e foi pra Seleção. Eu também fui. Nós convivemos jogando juntos.”

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