Tudo tinha sua época. A bola de gude virava febre e acabava com os estoques do armarinho da esquina. As manobras com ioiôs nos levavam a horas de prática. Em alguns meses do ano só se brincava com bola, em outros, apareciam os piões. A época do carrinho de rolimã era uma das mais divertidas – e doloridas. No inverno, buscávamos um lugar coberto para jogar baralho, e os ventos de agosto traziam as pipas para o céu do bairro. Nada de celulares, tablets e afins. Um ou outro ganhou um videogame pouco depois, mas só tinha graça se a turma se revezasse na manete. A rua ainda ganhava de goleada dos jogos eletrônicos.
Mas de todas as brincadeiras e jogos, a Copa era a que congregava mais gente. De férias, todo mundo chegava bem cedo à rua. Sonolentos, a empolgação ia aumentando ao longo do dia. Fazíamos de tudo um pouco. Ficávamos no pedágio, depois ajudávamos a amarrar bandeirinhas, pintávamos os postes. Os que tinham mais desenvoltura faziam os desenhos no chão, e eu fiquei bem longe dessa parte nas minhas duas primeiras Copas.
Desenhar sempre foi uma das minhas atividades favoritas. Em 2006, com 15 anos, era um dos mais velhos minha turma, já que os outros adolescentes, que comandavam as pinturas nos anos anteriores já estavam envolvidos em vestibulares, e estudos e os mais adultos não podiam, por causa de seus empregos e outras atividades.
Naquele ano, um amigo levou um caderno de jornal que trazia em página dupla um encarte especial, com papel de revista, uma arte com a caricatura de todos os jogadores. Me desafiou a trazê-las para a rua. Começamos pela logo da copa e depois distribuí alguns dos jogadores ao longo da via. No nosso quarteirão, no início da rua, reproduzi as caricaturas de Kaká, Lúcio, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho. Mais acima, Dida, Juan e até do técnico, o Parreira. Pena que nenhum de nós tenha registro fotográfico do trecho.
Mas tudo não passou mesmo daquele pedaço de rua. Não deu para terminar. Alguns vizinhos não gostaram. Ao invés de reclamar, de buscar conversar, jogaram baldes de água fria literais sobre os desenhos. Com sabão e raiva, esfregavam suas vassouras sobre os traços. Tudo bem. Ninguém agrada a todos. Faz parte do espírito esportivo aprender a perder. Depois de apagarem o “rumo ao hexa”, desmancharam o desenho do Fenômeno, o mais caprichado. Aí, me feriram. Larguei tudo de lado. Dane-se a esportiva (crianças, não façam isso em casa!). Até meu irmão, que é aficionado pelo futebol, dia desses me confessou não ver mais graça no mundial, desde aquele ano. O envolvimento não é mais o mesmo, por melhor que sejam as partidas.
Não vou dizer que torci contra o Brasil naquele ano, mas a má vontade e a frustração com as quais lidei em 2006 pareciam também afetar os jogadores em campo. Era inacreditável que aquele time cheio de estrelas não tivesse levado a taça. Eu perdi, eles perderam também. Depois disso, nunca mais desenhei um nada sequer na rua.
Porém, sempre torcia para que alguma criança ou adolescente viesse e pintasse a rua inteira. Como desse, como pudesse. Um cantinho que fosse. Em vão. Parece que a valentia da minha geração ficou nela, eles travarão outras lutas, os desafios deles são muito maiores. A minha rua, a mesma da infância, segue cinza asfalto. De todas as cores, a mais sem graça. A prevalência do tom de asfalto só é interrompida pelo caçula da nossa turma, o que talvez traduza a saudade de todos, em duas grandes bandeiras verdes- amarelas na fachada de sua casa.
Por isso, eu lamento. Pobre geração Z! Não dá mais para enfrentar a frota de veículos no peito e na raça, como fazíamos. Não dá mais para resistir em ocupar as ruas com as brincadeiras e costumes de lá. Era perigoso, mas a gente se virava. Hoje o perigo parece ter se intensificado. Não tem mais jeito, há muito mais carros que crianças. Os joelhos se ralam com menos frequência e gravidade, as risadas e gritos das brincadeiras não preenchem mais a tarde. Mas ainda temos Copa, crianças e ruas, e assim como esperávamos o hexa em 2006, ainda esperamos em 2018. Para mudar isso, precisamos desviar os olhos da tela e dedicá-los à criançada. Espero que daqui a quatro anos eu possa abrir a porta de casa e dar de cara novamente com a turma da vez e com a rua cheia de cor.