A metáfora do equilibrista caminhando na corda bamba pode ser usada para o dia a dia dos brasileiros. Durante a pandemia da Covid-19, a sensação é que esta corda ficou ainda mais extensa, tornando o trajeto mais longo e árduo. Para as mulheres, a travessia ocorre com pratos giratórios nas mãos, referentes aos “desafios extras” impostos pela sociedade. Dependendo da cor, classe social e orientação sexual, o peso destes pratos é ainda maior. Vencer esta prova não tem sido fácil, mas há histórias que inspiram a seguir adiante. Na última matéria da série “Linha de frente”, em homenagem ao Mês da Mulher, a Tribuna traz o relato de empreendedoras que se reinventaram para superar este momento difícil.
A pandemia reduziu a presença de mulheres à frente do próprio negócio no Brasil. Após uma onda crescente entre os anos de 2016 e 2019, quando o número de empreendedoras subiu mais de 20%, passando de 8,2 milhões para 9,9 milhões, o país encerrou 2020 com uma queda de 13%, chegando ao total de 8,6 milhões. A expectativa é que a retração seja maior à medida em que a pandemia se prolongue. Apesar da ausência de dados locais, o Sebrae afirma que Juiz de Fora repete a realidade nacional.
Os motivos para a desistência de 1,3 milhão de empreendedoras passam pelas cobranças da sociedade feitas de forma exclusiva às mulheres. “Com a necessidade de isolamento social por causa da Covid-19, elas precisaram dedicar mais tempo aos filhos, aos idosos da família e às tarefas domésticas”, explica a analista do Sebrae e embaixadora do programa Delas, que fomenta o empreendedorismo feminino, Daniela Fabri Ferreira.
A especialista observa que é uma questão cultural colocar a mulher no papel multitarefa. “Há estudos que mostram que 24% do tempo das mulheres são dedicados a estas funções não remuneradas que, apesar de serem de extrema importância, são colocadas apenas como obrigações femininas.” Paralelo à sobrecarga de uma jornada múltipla, a pandemia revelou a necessidade de uma reinvenção ágil para quem tem o próprio negócio. “Inovação sempre foi importante para qualquer empreendimento, mas nesse momento se tornou crucial para definir quem sobreviverá no mercado.”
Chefes de família
De acordo com o Sebrae, 49% das empreendedoras brasileiras são chefes de família, e 43% decidiram abrir o próprio negócio por necessidade. A atuação delas se concentra nos setores de comércio e serviços. “Há uma forte presença nos segmentos de alimentação, vestuário, beleza e estética, que foram muito afetados pela pandemia”, diz Daniela.
Apesar de tantas dificuldades, há empreendedoras que se reinventaram em meio ao caos. “Elas entraram no ambiente digital e conseguiram não só manter os empreendimentos, como expandi-los”, destaca. “Vimos o aumento de negócios relacionados ao cuidado, à saúde e, também, à criação de uma rede de apoio entre as mulheres.”
Soluções de mulheres para mulheres
Como exemplos, Daniela destaca algumas plataformas desenvolvidas em Juiz de Fora. A Hipátia nasceu em março do ano passado, início da pandemia, com a proposta de incentivar negócios entre mulheres que atuam em diferentes áreas. Já a Tumaas conecta gestantes e mães aos profissionais de saúde materno-infantil. A iniciativa foi criada em 2019 e se consolidou em meio à pandemia orientando o público-alvo sobre a Covid-19.
Outra iniciativa local é o aplicativo Para Elas Mobilidade, que conecta motoristas mulheres e passageiras. Após registrar queda na demanda durante a pandemia, a ferramenta passou por atualizações até ser relançada este ano. Hoje a plataforma se apresenta não só como uma solução em mobilidade, mas também integra uma rede de apoio para mulheres.
Direito de ocupar novos espaços no mercado
O aplicativo Para Elas Mobilidade foi lançado em 2019 com a proposta de oferecer uma solução para mulheres. “A ideia veio de observações no dia a dia. As passageiras relatavam satisfação ao serem atendidas por outra mulher e, por vezes, também diziam que tinham o interesse em trabalhar na área”, conta a idealizadora Hyamanna Souza.
Ingressar em um mercado majoritariamente masculino não foi fácil. “A gente está adentrando um território que ainda é muito machista, que é o da direção, o do trânsito. Existe o preconceito por parte de todo tipo de motorista, não só os que trabalham com transporte por aplicativo.”
Segundo ela, por vezes, até mesmo as mulheres desacreditaram que poderiam desempenhar a função. “Nos deparamos com uma barreira imposta pela sociedade de que há um limite até onde podemos ir”, analisa, destacando a necessidade do empoderamento feminino. “Precisamos mostrar que temos o direito de exercer essa atividade. Deixando claro que não é uma separação ou competição de gêneros. É apenas mostrar que se as mulheres decidirem trabalhar como motoristas, elas podem.”
Conquistar um novo espaço é um desafio que ficou ainda mais complexo com a pandemia. “Aos poucos, a demanda diminuiu, e muitas motoristas deixaram de trabalhar para cuidar da família.” Desta forma, o serviço foi interrompido temporariamente. Apesar das dificuldades, Hyamanna não desistiu.
A superação veio com a participação no Projeto Agente Local de Inovação do Sebrae, em que a empreendedora trabalhou melhorias para a ferramenta. Também houve uma atualização de posicionamento. Além de uma solução em mobilidade, o aplicativo agora apoia projetos voltados para mulheres de forma a fomentar a economia. O relançamento ocorreu este ano. “Queremos ser referência em humanização e apoio ao gênero feminino.”
Empreendedorismo, maternidade e empatia
Quando a pandemia da Covid-19 chegou em Juiz de Fora, Heliana Queiroz já estava habituada à rotina de vendas da sua loja on-line, As Garimpeiras. No entanto, a presença digital não foi suficiente para evitar a redução da demanda em um momento de crise econômica no país.
Para complementar a renda, ela decidiu profissionalizar uma prática que já fazia entre amigos: as vendas de brechó. Foi assim que nasceu a página Brechó de 5uintal com foco em peças novas ou pouco usadas. “Vi que seria uma oportunidade, pois os preços são bem mais baratos.”
A estruturação do novo negócio aconteceu num momento em que Heliana precisou dedicar mais tempo às tarefas domésticas e à maternidade, por conta do isolamento social. Divorciada e mãe da pequena Júlia, de 7 anos, ela compartilha a guarda com a outra mãe da criança. “Sou privilegiada por isso, pois consigo dividir o meu tempo melhor. Quando a Ju está comigo, passo o dia ajudando com a escola e criando coisas para ela se entreter, o que é muito importante, pois ela foi diagnosticada com hiperatividade”, relata. “Quando ela está com a outra mãe, eu me dedico às vendas.”
Para Heliana, a superação acontece diariamente diante dos desafios enquanto mulher, mãe e empreendedora. Ao longo da pandemia, a força precisou ser maior por conta da perda de pessoas muito próximas. “O maior desafio está sendo nos mantermos vivos.”
Por isso, ela acredita que a palavra de ordem deve ser “empatia”. Dentro deste propósito, a cada estação, as peças não vendidas no brechó serão doadas. “Apesar de ter que correr atrás todo dia para sobreviver, não dá para esquecer que tem mulheres passando por dificuldades muito maiores.”
Leveza para os tempos difíceis
Reinvenção já faz parte da vida de Malu Machado. Depois de 30 anos dedicados ao jornalismo, ela decidiu buscar novos caminhos com a fotografia. “Foi a maneira que encontrei para me expressar artisticamente”, define. O trabalho começou com registros sobre o universo feminino a partir do olhar sensível sobre a gestação, a maternidade e o empoderamento.
Há três anos, ela montou um estúdio para trabalhar em home office e, assim, poder passar mais tempo com a mãe, de 87 anos. No ano passado, informada por amigos que moram no exterior sobre a gravidade da Covid-19 no mundo, antes mesmo de a doença chegar à cidade, Malu já sabia que seria a hora de se reinventar outra vez. “Independente das medidas de restrição, eu tinha certeza que iria fechar o estúdio. Para a segurança da minha família, eu não poderia continuar recebendo um fluxo de pessoas no home office.”
Malu percebeu que, neste momento, em que todos passam mais tempo em casa e há uma apreensão por causa da dura realidade da Covid-19, era preciso “levar leveza e encantamento para a vida das pessoas”. “Está difícil ver o copo meio cheio, mas é preciso para que possamos acreditar que vamos, sim, superar isso tudo.”
Foi assim que ela e a sócia Vivi Godinho criaram a Art Wall Quadros, uma galeria de arte on-line, que também oferece serviços de consultoria. As fotografias são autorais, impressas em papel Fine Art e emolduradas com madeira de reflorestamento. Para cada quadro vendido, as empreendedoras assumiram o compromisso de plantar uma árvore.
Se reinventar mais uma vez, conciliando a veia artística com o lado empresarial, os cuidados com a família e a maternidade, exigiu bastante jogo de cintura. “Não é fácil, mas a fotografia é uma inspiração para mim.” Sobre o sentimento que deseja passar com o novo projeto, ela é enfática: “queremos que, no meio desse tumulto, a nossa arte contribua para um ambiente agradável. Uma hora isso vai acabar. A nossa mensagem é sobre manter o equilíbrio emocional e o bem-estar em nossas casas.”