
O comércio de rua representa mais do que uma parcela do setor econômico. Para muitas cidades é, também, um laço de memória e identidade local. Em Juiz de Fora, o comércio de rua do Centro, conhecido como “shopping a céu aberto” por ter várias ruas interligadas por meio de galerias, tem no Calçadão da Rua Halfeld o principal ambiente de integração. Este local, nos últimos anos, tem passado por muitas modificações diante da perda de lojas tradicionais, alterando o espaço, a economia, a rotina e, também, a identidade da cidade. O cenário para estas empresas tem sido desafiador.
Dados da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de Minas Gerais (Fecomércio-MG) revelam que Juiz de Fora, até 2010, possuía 26 empresas comerciais com mais de 50 anos de atividade e três que estavam no mercado há, pelo menos, um século. De lá para cá, a cidade perdeu a Drogaria Dia e Noite, que fechou no ano passado, e, nas últimas semanas, a loja de roupas Glamour anunciou o encerramento das atividades, comovendo muitos juiz-foranos.
A Glamour, inaugurada há 61 anos, está localizada há 57 no Calçadão da Halfeld e vai fechar as portas em maio. De seu início, os proprietários da empresa, os primos libaneses Mukaiber Miana, 82 anos, e Mtanos Miana, 81 anos, relembram um espaço diferente. “Não havia o calçadão, era uma rua com asfalto onde os carros podiam estacionar”, recorda Mtanos. “Muita coisa mudou, mas os clientes nos acompanham desde aquela época, por isso, acredito que eles ficaram chateados com o fim da loja”, avalia Mukaiber.
A decisão de parar um trabalho de tantos anos foi motivada por diversos fatores. “Não tem como continuar, pois não está valendo mais a pena. Já construímos nossas vidas, não seria inteligente manter a loja aberta diante do contexto econômico atual”, explica Mtanos. “Os impostos aumentaram, o aluguel encareceu e os custos fixos estão cada vez mais altos.”
Mukaiber conta que durante 61 anos à frente da Glamour passou por diferentes fases econômicas do país. “Vimos a troca de várias moedas e vivemos momentos bons e outros mais difíceis, mas agora chegou a hora de parar. Temos planos de descansar, fazer uma viagem ao Líbano e aproveitar com a nossa família.” Segundo os sócios, os herdeiros atuam em áreas diferentes e não seria válido dar continuidade à empresa familiar.
Com o fechamento da loja Glamour, o Calçadão da Halfeld perde mais uma empresa tradicional. Joalheria Meridiano, Drogaria Dia e Noite e Dental Mineira foram algumas das lojas que saíram recentemente do local depois de uma estadia de longa data.
A Meridiano ficou 99 anos no Calçadão. Em entrevista concedida à Tribuna em 2012, um dos herdeiros da empresa, Roberto Villela Vieira, explicou que o negócio não precisava de uma sede grande e, por isso, mudaria de endereço. Desde então, a antiga loja sediou empresas de telefonia e, atualmente, está vazia.
Também em 2012, a Dental Mineira, que estava há 60 anos no Calçadão, mudou-se para a Braz Bernardino. Já no ano passado, a Drogaria Dia e Noite, que atuava há 40 anos no local, fechou as portas. Desde então, o estabelecimento está disponível para locação. Ambas as saídas foram motivadas pelo encarecimento de custos.
Na memória dos juiz-foranos ainda passaram pelo Calçadão da Halfeld as lojas Camisaria Central, Casa do Pato, Miami, Monza e a loja de tecidos Huddersfield.
Espaço deve atrair grandes redes
Para o presidente do Sindicato do Comércio de Juiz de Fora (Sindicomércio-JF), Emerson Beloti, a cidade passa por um processo de descaracterização. “Estamos perdendo nossa identidade. As grandes casas estão se rendendo por uma série de motivos. Vivemos um período de grande instabilidade econômica, o perfil do colaborador do comércio mudou muito e trouxe dificuldades para o recrutamento de pessoas, a concorrência é maior, os juros, os tributos e o aluguel estão mais caros”, avalia. “Estas empresas tradicionais têm o agravante de que 90% são familiares e, em alguns casos, não há um sucessor para dar continuidade ao trabalho.”
Beloti fala com conhecimento de causa. A loja da família foi criada pelo pai há quase 50 anos. “Meu irmão e eu tivemos o interesse em atuar na empresa”, conta. Na geração seguinte, dos quatro possíveis sucessores, apenas um se interessou pelo ramo e já atua dentro da empresa. “Na próxima geração não sabemos o que irá acontecer.”
Na análise do empresário, o fechamento de lojas tradicionais provoca uma perda de identidade maior do que econômica. “Juiz de Fora é um ótimo lugar para se investir e os grandes grupos já entenderam isso. Não sofreremos um esvaziamento do Centro ou teremos lojas fechadas por muito tempo, este é apenas um momento de transição. A tendência é que redes de fora se instalem aqui, o que irá gerar empregabilidade, mas irá descaracterizar o espaço. Aquela proximidade do consumidor de encontrar o dono de estabelecimento atrás do balcão para atendê-lo tende a acabar.”Ele destaca que o Calçadão da Halfeld deve abrigar grandes varejistas e estabelecimentos de serviços no futuro. “Teremos cada vez mais as ruas do Centro segmentadas por tipos de comércio.”
O gerente regional do Sebrae, João Roberto Marques Lobo, tem a mesma percepção. “Juiz de Fora tem uma peculiaridade que é a identificação com o comércio tradicional. Acompanhamos a comoção das pessoas com o fechamento da loja Glamour e isso é uma característica do mercado mineiro”, analisa. “O cenário futuro aponta para a convivência de empresas locais com as grandes redes varejistas, diante desta explosão das franquias que vivemos.”
Desafio para quem decide ficar
Para as lojas tradicionais que permanecem em atividade, há muitos desafios a serem vencidos. “O principal deles é garantir a atualização e modernização da gestão e dos processos. Por vezes, empresas com alta maturidade podem não inovar, o que prejudica a continuidade, principalmente, num momento em que a concorrência é grande”, orienta o economista da Fecomércio-MG, Caio Gonçalves. No caso de empresas familiares, ele destaca que é importante preparar colaboradores e gestores. “Não há descanso no processo organizacional e nas vendas, por isso, a equipe deve estar afiada para garantir produtividade e eficiência.”
O gerente regional do Sebrae, João Roberto Marques Lobo, diz que a entidade oferece cursos para realização de sucessão em empresas familiares. “É muito importante preparar o herdeiro para assumir e, também, para enxergar além do que já vem sendo feito.”
Ocupando a esquina da rua Halfeld com a Avenida Rio Branco há 42 anos, o proprietário da Arpel, Eduardo Delmonte, fala das transformações que viu naquela que chama de “a grande rua da cidade”. “Quando montei a Arpel naquela esquina fui chamado de louco, pois uma loja de moda fina feminina não era o perfil da rua Halfeld. A partir daí já começou uma mudança de perfil e, com a criação do calçadão, passou a ser o local onde todos queriam estar, consequentemente vieram mais lojas. O mundo mudou, o consumo expandiu, as coisas estão mais acessíveis”, relembra. Apesar de elogiar a diversificação, Delmonte lamenta o crescimento da poluição visual espalhada pela rua. “Hoje o Calçadão é um mercado persa, vale tudo. Há um desleixo muito grande dos governantes. É preciso tirar tantos camelôs e letreiros e cuidar da nossa paisagem. Eu continuarei aqui e não sairei”, decreta.
Instalada desde 1981 no Calçadão da Halfeld, a loja Kika Colorida deve continuar sua jornada por mais longos anos. “Para o nosso ramo de ótica, o ponto aqui é muito bom”, destaca o proprietário Alípio Padilha, 71 anos. Mas o negócio nem sempre foi este, como ele mesmo conta. “Quando era criança, estudei no seminário e tomei gosto por fotografia. Quando decidi criar a loja, sabia que seria neste ramo”, relembra. “Mas a área da fotografia mudou muito. Hoje, por exemplo, quase ninguém imprime fotos. Fui percebendo a necessidade de adaptar o negócio ao mercado e, com isso, fui diversificando a loja, inserindo instrumentos musicais e, posteriormente, a ótica.”
Hoje, Juiz de Fora possui dez lojas da Kika Colorida, sendo quatro no Calçadão. A empresa ainda está presente nas cidades de Petrópolis e Governador Valadares. “As dificuldades existem em todos os setores, mas estamos aí para enfrentá-las. Não pretendo parar tão cedo.” Segundo ele, como a empresa é familiar, o que ele já tem feito é preparar o seu sucessor. “Um dos meus filhos já está à frente do negócio e eu continuo aqui para dar esse suporte.”
Alípio afirma que durante todos esses anos, acompanhou várias mudanças na Rua Halfeld. “São idas e vindas de empresas, mas isso aqui não acaba. Juiz de Fora tem um shopping a céu aberto que continuará vivo por muito tempo.”
A loja de roupas Magnum está há 28 anos no Calçadão e também pretende continuar de portas abertas. “As dificuldades econômicas sempre afetam o comércio, pois as pessoas param de comprar. É preciso se planejar para conseguir enfrentar os momentos mais fracos de venda”, explica gerente do estabelecimento Nilton Barbosa Velloso, que atua na loja desde a fundação.
Ele recorda que a escolha do Calçadão da Halfeld para sediar a primeira loja Magnum ocorreu por conta do perfil do público. Com as mudanças que Nilton viu no decorrer dos anos, ele diz que o futuro não o intimida. “O mercado sempre vai ter altos e baixos. É preciso saber se adaptar.”