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Juiz-foranos mudam hábitos diante do aumento de até 40% da carne

Altos precos da carne fernando priamo 4
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A pandemia da Covid-19 agravou a situação financeira da maioria dos brasileiros, e as constantes altas nos preços dos alimentos têm impactado diretamente na mesa das famílias. Entre os vilões que pesam no bolso do consumidor está a carne bovina, que subiu, em média, 31,31% nos últimos 12 meses, segundo a pesquisa mais recente, divulgada no fim de agosto, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nem os cortes considerados de segunda estão livres das consequências da inflação, já que o músculo foi o que mais subiu: 40,73%, seguido pelo patinho (36,86%), chã de dentro (33,96%), acém (32,21%) e alcatra (31,08%). Para especialistas, a valorização do dólar frente ao Real, as crises hídrica e energética, o aumento das exportações da carne, o desemprego e a própria perda do poder de compra do brasileiro ajudam a desenhar esse cenário, que tem levado cada vez mais pessoas a buscar alternativas para continuar consumindo proteína de origem animal, optando por frangos e suínos, por exemplo, além de ovos.

O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) ficou em 0,89% em agosto, sendo o maior resultado para o mês desde 2002, quando atingiu 1%. Segundo o IBGE, o índice – que difere do IPCA apenas no período de coleta, realizada, em geral, do dia 16 do mês anterior ao 15 do mês de referência, e na abrangência geográfica – foi alavancado pelo aumento da energia elétrica. O acumulado do IPCA-15 no ano já é de 5,81% e chega a 9,30% nos últimos 12 meses. A inflação da carne – e de uma série de outros itens – também afeta proprietários de restaurantes e de açougues, que não conseguem repassar a totalidade dos aumentos, para não perderem os clientes, mesmo ainda driblando os prejuízos causados pelas necessárias medidas sanitárias de restrição para evitar a propagação do coronavírus.

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A mais recente pesquisa divulgada pelo IBGE aponta que nem os cortes considerados de segunda escapam da inflação, já que o músculo foi o que mais subiu: 40,73%, seguido pelo patinho (36,86%), chã de dentro (33,96%), acém (32,21%) e alcatra, em 31,08% (Foto: Fernando Priamo)

De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção de frangos e suínos apresentou crescimento nos últimos anos, com previsão de novo recorde em 2021, chegando a 14,76 milhões de toneladas e a 4,35 milhões de toneladas, respectivamente. Os bovinos, por sua vez, tiveram pequena redução e devem atingir 8,31 milhões de toneladas neste ano. Um dado importante, que tem ligação direta com os preços, é que a carne vermelha registrou aumento significativo nas exportações nos últimos anos. Com isso, a disponibilidade do produto para consumo interno só tem caído a cada período e deve ficar em 26,4kg por habitante em 2021, conforme a Conab, já que 2,74 milhões de toneladas estão projetados para outros países. Há seis anos esse índice per capita era de 33,2 kg. A avicultura de corte passou de 45,8kg para previsão de 49,7kg por pessoa, no mesmo período, enquanto os suínos mantêm-se praticamente estáveis, desde 2015, com média de 15kg de consumo anual por indivíduo.

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“Paguei R$ 48 o quilo e deram só quatro bifes”

Embora as dietas vegetarianas ou apenas a exclusão da carne vermelha no cardápio venham ganhando cada vez mais adeptos por questões ambientais e/ou ligadas à saúde, muitos juiz-foranos estão parando de consumir cortes bovinos porque não têm mesmo condições de pagar pelos altos valores praticados no mercado. O motoboy Humberto Alexandre, 45 anos, deixou de comprar carne vermelha logo no começo da pandemia. “Ultimamente não ando comendo por causa do preço, que subiu muito. E o frango também já está indo para a mesma situação.” Segundo o IBGE, a ave sofreu reajuste médio de 22% no acumulado dos últimos 12 meses. Só neste ano, o aumento foi de 10,77% para o frango inteiro e de 15,40% em relação aos pedaços. “Antigamente, eu comprava contrafilé, acém, músculo, mas até carne de segunda está R$ 40 o quilo. A bandeja de 1kg de frango também já está R$ 19. Era R$ 9,90”, recorda o motoboy, que vê o seu poder de compra só diminuir. “As coisas aumentaram muito, e o dinheiro continua o mesmo.”

Já na família da autônoma Eliane de Paula, 59, o consumo de proteína animal é alternado entre frango e carne de boi durante a semana, a fim de equilibrar as contas. “Para os domingos, minha mãe gosta de comprar alcatra. Ela dá uma parte do valor, e eu ajudo com outra. Mas nos outros dias é acém, costela. Está tudo muito caro, cada vez que vou ao açougue ou ao supermercado os preços subiram mais. Paguei R$ 48 o quilo da alcatra e deram só quatro bifes (um para cada um).” Com os gastos com a alimentação elevados, Eliane tem deixado de lado outras despesas, como com vestuário. “O óleo, o café e o arroz também aumentaram muito. Com isso, deixo de comprar uma roupa ou um sapato, dou mais preferência às comidas. Mas se a carne continuar subindo vou ter que cortar.” De fato, o óleo de soja foi um dos itens que mais acelerou e, conforme a pesquisa do IPCA-15, alcançou 78,75% no último ano, enquanto o arroz foi reajustado em 36,89%, e o café, em 17,15%.

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A faxineira Denise Maria Morais da Silva, 59, nunca foi consumidora de carne bovina, mas tem sentido no bolso a alta do frango. “Até cortei um pouco, estou optando mais por legumes e verduras. O arroz e o tomate também tiveram uma subida boa. Então tenho diminuído as compras”, diz ela, que mora com a filha, 26, e a neta, 5, que chegam a consumir carne vermelha ocasionalmente, como bife de fígado e contrafilé. Segundo o IBGE, o tomate teve elevação de 47,57% na soma dos últimos 12 meses.

Mesmo diante das dificuldades financeiras do momento, a porteira Eusir Maria Isabel, 49, não abre mão da carne. “De vez em quando eu costumava comprar peça de picanha no supermercado, mas ultimamente estou optando por uma bandejinha de contrafilé ou alcatra, uma vez por semana. Também compro frango. Como moro sozinha, o consumo é pouco. Mas o aumento de todas as coisas está absurdo. O que você compra em um mês, não consegue comprar no outro pelo mesmo valor. Mas, se eu estiver com vontade de comer alguma coisa, não me importo com o preço, porque não sei o dia de amanhã.”

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Antes da chegada do coronavírus, o autônomo Aurinho Pinto da Silva, 61, já havia parado de consumir carne de boi devido ao alto custo. A medida foi tomada há cerca de três anos para equilibrar o orçamento familiar. “Pelo preço, não está dando para consumir nem carne de segunda, só de frango. Muita coisa que eu comprava, não compro mais.” A situação também levou à inclusão de mais ovos na dieta. O produto teve acréscimo de 9,3% apenas neste ano, chegando a 12,29% em 12 meses. “O frango também subiu muito, mas vou procurando as promoções, inclusive de legumes e verduras, porque a cada mês o dinheiro dá para menos coisas”, avalia Aurinho, que costuma contar com a esposa, três filhas e um neto à mesa.

Açougue aponta queda de 30% nas vendas

Se para quem compra está complicado, para quem vende a atual conjuntura também não está fácil. “Senti queda de 30% nas vendas nos últimos quatro meses”, destaca Reinaldo Viana, 50 anos, proprietário do açougue Mister Carnes, no Centro. “Também não conseguimos repassar o aumento, então nossa margem de lucro diminuiu muito. Parece que os preços agora estabilizaram, e nossa expectativa é que caiam um pouco, mas não agora na entressafra.”

Para quem está há 28 anos no ramo, este é um dos piores momentos de crise. “Acho que alguns clientes tentaram migrar para carne mais barata, agora estão voltando para a de primeira, mas estão comprando menos quantidade. Acho que tem muito a ver com o problema social, porque tudo aumentou muito: luz, gasolina, foi geral.” Segundo o comerciante, mesmo com os transtornos financeiros causados à população desde o começo da pandemia, a queda mais brusca nos negócios foi sentida agora. “Falta dinheiro mesmo no mercado. Até a segunda semana do mês nós vendemos bem, na terceira, fica razoável e, na quarta, não conseguimos vender. O cliente não foi embora, mas está comprando menos.”

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Reinaldo acredita que comercializa mais ou menos a mesma quantidade de todos os tipos de carne. Entre os itens na tabela estão músculo (R$ 33,98kg); acém (R$ 32,98); patinho (R$ 41,98); alcatra ou contrafilé (R$ 45,98); picanha comum (R$ 64,98); filé mignon (R$ 69,90). “Agora no inverno as pessoas comem mais carne de segunda”, observa, acrescentando que o filé mignon, apesar de já ter custo alto, não foi dos cortes que mais subiram.

Do Centro à Zona Norte, a sensação é a mesma: “Com certeza sentimos o impacto. O pessoal está preferindo frango e porco, porque a carne bovina, hoje, você não compra por menos de R$ 30 o quilo. Mas o frango também teve reação, o preço do filé está R$ 20/kg, antes era R$ 10,98, teve quase 100% de aumento. A carne suína está mais volátil”, analisa Walisson Lima, 27, funcionário do setor administrativo da Casa de Carnes Munck, situada em Benfica. “A carne de boi está sendo vendida mais para churrasco, evento especial, não para o dia a dia. Algumas pessoas ainda compram acém, músculo ou paleta (todos a R$ 29,98kg), porque o preço da carne de primeira está lá em cima.” Entre essas, o patinho sai a R$ 31,98/kg, alcatra a R$ 37,99/kg, contrafilé a R$ 39,98/kg, filé mignon a R$ 49,98/kg e picanha a R$ 59,98/kg.

“Tivemos uma boa queda nas vendas e, com os preços altos, temos que trabalhar com a margem muito menor, para o cliente sentir que ainda cabe no bolso. De vez em quando, conseguimos chorar com o fornecedor, quando não exporta, para fazermos promoção. Mas, para eles, é mais vantagem exportar, porque é garantia de mercadoria comprada.” Walisson ainda pondera que o começo da pandemia não foi ruim para os negócios. “O pessoal estava estocando em casa, com medo de fechar tudo. Mas, depois, com o desemprego, o movimento começou a diminuir, porque a carne é mais um complemento, não é essencial. Até o momento em que o Governo federal ajudou (com auxílio emergencial) ainda tinha freguesia boa. Depois, os recursos foram acabando.”

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‘Não sabemos como vai ser o dia de amanhã’
As consequências da valorização da carne vão além da venda direta ao consumidor, já que os restaurantes também vivenciam as oscilações do mercado. “Não é só a carne, está subindo tudo. Mas a gente não pode, nem consegue, repassar o aumento integral para o cliente, tem que absorver uma parte (do prejuízo), sendo que ainda estamos na pandemia. Ou seja, houve uma perda enorme nos últimos dois anos de giro de capital, e o movimento ainda não está normal. Além disso, gás, luz, está tudo subindo tão rápido e aos montes, cada semana tem um reajuste”, dispara Marlon da Costa Silva, 36 anos, proprietário do Bistrôzin, no Cascatinha, Zona Sul. Conforme o último levantamento divulgado pelo IBGE, o botijão de gás subiu 31,11% em 12 meses, sendo 23,96% apenas neste ano.

“Está dando para ter lucro, mas está abaixo da meta estabelecida de mínimo. Já fiz ajustes (administrativos) e vou ter que fazer outros”, enfatiza o comerciante, que também vê a experiência se repetir no restaurante da família, Vó Maria, no mesmo bairro. “Ficamos meio no escuro, não sabemos como vai ser amanhã e se o mês vai fechar. Fora a ansiedade. O prejuízo não é só financeiro. Essa instabilidade não é boa.” Para driblar a crise, ele diminuiu um pouco a quantidade de itens no cardápio do Bistrôzin, para não repassar 100% do aumento para o cliente, que pode escolher entre os itens oferecidos diariamente, com opção de uma carne.

Tendo a carne bovina como a estrela da casa, o dono do restaurante Brasador, Juliano Botti, conta que está sempre se reinventando em meio à pandemia. “Nossos cortes são porcionados e feitos na hora, para não ter perda, nem excesso de consumo”, explica, sobre a ideia lançada há quase 20 anos e concretizada no Alto dos Passos, Zona Sul. “Mesmo antes de crise, trabalho com as fichas técnicas de cada alimento, atualizando meu preço de custo. Agora estamos revisando essa ficha a todo momento, para saber as margens de lucro, e onde posso repassar para o cliente de maneira justa. Se eu repassar os 30% de aumento direto na carne, fica inviável.”

O comerciante lembra que todo esse trabalho ocorre concomitantemente às restrições do número de mesas e de horários de funcionamento, em decorrência dos decretos da Prefeitura como prevenção à Covid-19. “O fluxo de clientes presencial diminuiu, mas aumentamos muito o delivery e reestruturei toda essa parte. Fazemos, em média, 1.400 entregas por mês. Antes, era quase inexistente. Mas só vou conseguir quitar os prejuízos aos poucos, porque ficamos muito tempo fechados e também sem vender bebida alcoólica. Acho que o momento é de passar pela crise, e não, de lucrar com ela.”

Para o economista e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Lourival Batista de Oliveira Júnior, uma série de altas de vários produtos representa a ausência de preocupação do Governo federal com o controle e o acompanhamento desses preços. “Não falo em congelamento ou intervenção, mas em verificar o porquê de estar acontecendo e tentar promover medidas que tentem diluir um pouco esse impacto.” O caso específico da carne, segundo ele, tem a ver com a própria desvalorização da moeda, já que o produto é cotado em termos internacionais. “De outro lado, está associado aos problemas climáticos, e as questões da seca afetam as condições da carne bovina.”

Membro do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais (Corecon-MG), Lourival observa ainda o “fenômeno” de aproximação dos preços dos cortes de segunda aos de primeira. “As pessoas com menor poder aquisitivo deslocam para cortes mais baratos, mas, quando todo mundo faz isso, sobe o preço. Com isso, determinados cortes, como sobras de osso, que antes eram jogados fora, acabam tomando espaço como opção de compra. A população se sujeita a isso para consumir alguma carne bovina. Também há substituições por outros tipos de proteína animal, mas ocorre o mesmo movimento, deslocando a demanda e fazendo com que o preço suba.” O especialista complementa que, com o nível de desemprego alto, a renda em baixa e o consequente endividamento para colocar alimento dentro de casa, está se agravando um quadro de comprometimento da segurança alimentar.

“Os aumentos de gás, energia e combustível só jogam lenha no processo inflacionário. A energia é a base de tudo e impacta todas as cadeias produtivas. A seca também é um problema climático forte.” Segundo Lourival, sem políticas públicas preventivas, como investimento em energias eólica e fotovoltaica, a situação só deve piorar a longo prazo. “A inflação tende a prejudicar sempre os mais pobres, que têm menos condições e não possuem reservas. É a soma de uma série de aumentos que afetam o orçamento diário das famílias. Mas está havendo uma paralisia (por parte das autoridades) e nenhuma ação concreta.”

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