“Round 6”, uma produção sul-coreana, se tornou há poucos dias a série mais assistida na história da plataforma Netflix. Ela conseguiu atingir cerca de 165 milhões de espectadores e ficou em primeiro lugar em 83 países do mundo. Nesse contexto, chama a atenção uma particularidade imprevista: o sucesso entre o público adolescente e até mesmo infantil, apesar de ter classificação indicativa de 16 anos. E isso porque, apesar de invocar brincadeiras infantis e aparente diversão, elementos que costumam atrair crianças, a série de fato é bastante violenta e tem conteúdos impróprios para crianças e mesmo adolescentes mais jovens.
Apesar disso, crianças no mundo inteiro tiveram a atenção despertada pela série. Foi exatamente isso que aconteceu na casa de Paula Machado, quando viu a filha Luiza, de 10 anos, cantando a música “Batatinha 1, 2, 3”, que tem destaque logo no primeiro episódio de “Round 6”. A cena imita a brincadeira de criança, em que os participantes não podem se mover, mas ali torna-se um jogo mortal entre adultos. Após ter recebido reportagens sobre a série em um grupo de mães no WhatsApp, Paula já sabia que aquele conteúdo era inadequado e que a classificação indicativa era de uma idade bastante superior à da filha.
Ao conversar com Luiza, Paula soube que ela apenas havia escutado a música em vídeos do Tik Tok, mas não estava assistindo à série. A mãe explicou para a filha, então, os motivos pelos quais preferia que ela não assistisse, já que a série tem cenas violentas e impróprias para crianças da sua idade.
Ao contrário do caso de Paula e Luiza, no entanto, há inúmeros relatos de que há crianças assistindo a esse tipo de série sem que as famílias percebam ou intervenham. Por esse motivo, em Juiz de Fora e no resto do Brasil, diversas escolas se mobilizaram para conscientizar os pais e mesmo os alunos. Até o criador da série, Hwang Dong-hyuk, deu uma entrevista ao jornal “O Globo” dizendo estar assustado com o sucesso da série entre esse público mais jovem. “Essa obra não é para elas”, disse o diretor a respeito das crianças.
A série se tornou muito popular nessa faixa etária, provocando então uma discussão mais importante sobre a facilidade de crianças e adolescentes acessarem conteúdos impróprios nas plataformas de streaming. Apesar do número de pessoas desse grupo infantil assistindo a “Round 6”, especialistas revelam que a problemática vai muito além dessa série em especial.
Os impactos para a formação
Para a formação de crianças e adolescentes, há conteúdos que devem ser assimilados e compreendidos para que o cérebro se desenvolva e crie uma bagagem. Mas esses conteúdos devem estar de acordo com seus limites de entendimento. É justamente esse problema que Cristina Coronha, psicopedagoga, vê quando escuta pais de crianças que estão assistindo a séries como “Round 6”.
Ela conta que, quando pergunta para os pais o motivo de eles deixarem as crianças verem, eles respondem: “eu não sei o que eu acho, todo mundo assiste. Então, penso que não tem problema”. Para ela, isso demonstra uma falta de compreensão dos pais sobre o que pode fazer bem e o que pode fazer mal nessa faixa etária. Um conteúdo violento e com cenas de sexo podem deixar as crianças confusas e assustadas, além de fazer com que elas possam tentar reproduzir esses atos, que já passam a fazer parte da sua bagagem sem que elas tenham adquirido, no entanto, uma maturidade maior para lidar com as questões levantadas pela série.
Ainda que essa não seja uma relação imediata e direta, que vá fazer automaticamente com que as crianças reproduzam o comportamento, para a psicopedagoga o acesso a esse tipo de conteúdo impróprio passa a formar o imaginário das crianças sem que exista uma capacidade maior de distinção de valores. “O que definimos como bom ou ruim é a nossa capacidade inteligente de pensar, refletir e fazer um trabalho para analisar tudo aquilo que eu recebo”, Cristina explica.
Viralizando nas redes
Como “Round 6” foi a série mais assistida da Netflix, também é possível ver o impacto que teve nas redes sociais. Surgiram diversos memes, vídeos inspirados na obra, as músicas da série foram recuperadas e indivíduos passaram a tentar reproduzir por conta própria as brincadeiras mostradas ali. Não à toa, foi exatamente assim que Luiza teve contato com a série, e é também assim que diversos outros conteúdos impróprios chegam até as crianças.
Neste mundo moderno, em que é possível que conteúdos cheguem até o público infantil mesmo com os cuidados tomados, é normal que as crianças sintam curiosidade. Alana Andrade, psicóloga, doutora na área e professora da Uniacademia, orienta que os pais devem entender esse interesse e abrir um diálogo sobre os motivos pelos quais a série não deve ser assistida. Além disso, ela aponta que é importante monitorar o acesso das crianças a esses conteúdos inclusive checando o histórico e vendo o que está sendo assistido e visto nesse meio.
Para Alana, essa conscientização quanto ao uso da internet e do streaming precisa ser realizada assim como é feita quanto às normas de segurança nas ruas, por exemplo. “A internet já faz parte da vida, e é preciso estar atento quanto aos limites que devem ser estabelecidos”, alerta.
Nathália Meneghine, psicanalista, professora e especialista em educação, também aponta a questão da tecnologia como uma chave para compreender essa dinâmica, inclusive para refletir sobre o uso que os próprios pais e outros adultos em torno das crianças fazem da tecnologia. De acordo com ela, muitas vezes as telas são oferecidas para as crianças como “apaziguadoras” ou “chupetas eletrônicas”.
“Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de distinguirmos o uso do uso excessivo, inclusive, por parte dos adultos, já que as crianças não aprendem apenas através do que dizemos a elas, mas também pela observação de nossos modos de funcionamento”, ela conclui.
Como regular o acesso e o tipo de conteúdo assistido
Nesse cenário, para muitos pais acaba parecendo difícil encontrar maneiras de fazer um controle do que os filhos assistem em plataformas de streaming. Alana Andrade diz que, para conseguir fazer isso, é preciso pensar em duas vias: a partir do ponto de vista tecnológico e do diálogo com as crianças.
Para ela, uma medida efetiva é criar perfis infantis nos serviços de streaming e de vídeo. Essa medida já faz com que não sejam disponibilizados ou indicados conteúdos impróprios, mas somente aqueles que estão de acordo com a idade das crianças.
Nesse mesmo sentido, do diálogo, Alana explica que ter contato com filmes e séries é parte da formação cultural, e desde que sejam apropriados, isso pode ser benéfico para as crianças. Paula, mãe de Luiza, conta que é exatamente isso que ela faz. E que também busca assistir a essas séries e filmes com a filha, para conversar com ela sobre os temas e ampliar os interesses da menina.
A psicóloga também destaca que pode ser muito importante delimitar horários, locais e que tipo de conteúdo pode ser assistido. E ainda lembra que esse tipo de discussão deve ocorrer em escolas e ser promovida inclusive pelo próprio governo.
Proibição total não é boa opção
Para Alana, a proibição total e sem diálogo não é a resposta, já que pode acabar despertando ainda mais interesse entre as crianças e adolescentes. Na visão das especialistas, a chave da questão parece estar justamente nos pais assumirem autoridade sobre a situação, decidindo de forma consistente o que acham melhor para os seus filhos.
Dentro desse contexto, Nathália Meneghine relembra que, apesar de ser uma decisão familiar, em casos graves, se há negligência nesse sentido, o Estado pode interferir, através de suas instituições, para garantir que a criança não seja exposta àquilo com que, por sua singular condição, ainda não tem recursos psíquicos para lidar.
De acordo com ela, temas como violência e sexualidade têm dimensões públicas e precisam ser abordados pela família e pela escola de maneira adequada, para que não deixem as crianças e adolescentes expostos. A questão desafiadora, do seu ponto de vista, é como fazer isso considerando que a infância é um tempo de estruturação, com recursos subjetivos diferentes para simbolizar e elaborar a realidade. E isso é justamente o contrário do que as séries com classificação imprópria fazem quando assistidas por menores.