É a parede de chapisco que guarda a lembrança da casa da avó. É o azulejo amarelado, com desenhos floridos na cozinha, que traz à memória a casa da mãe. Eram ocres os tijolos vazados que serviam de esconderijo para os brinquedos dos tempos de criança. O tato, como os outros todos sentidos, reservam gatilhos para a saudade. Na trama da rede urbana, diferentes texturas e figuras retomam não apenas vivências individuais, mas a própria narrativa coletiva, revestida de cimento e outros matérias.
“Fachadas e detalhes de determinados edifícios podem ser comparados aos traços que identificam o rosto da nossa cidade. No conjunto, integram uma espécie de fisionomia, trazendo aspectos que revelam a história do município e torna nossa paisagem diferente de todas as outras”, pontua o artista visual e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF Jorge Arbach. “São estas pequenas coisas do cotidiano que auxiliam na constituição de nossa cultura e de nossa história de vida.”
Segundo o arquiteto e urbanista Rogério Mascarenhas, cada projeto arquitetônico é capaz de contar sobre o lugar onde está inserido e, também, sobre quem o ocupa e sobre o tempo em que foi feito. “É importante que conte uma história. Qualquer construção é datada. Adoro andar pelas cidades apreendendo sua trajetória através dos prédios”, comenta o profissional, responsável pela assinatura de alguns dos imóveis que ajudam a escrever o presente da urbe.
Para Arbach, há uma inventividade de projetos arquitetônicos em Juiz de Fora impressionante. “São tantos estilos, característicos de épocas diversas, coabitando na mesma cidade. Isto não pode ser caracterizado como indefinição na identidade arquitetônica de nossa cidade. Isso só caracteriza Juiz de Fora como um núcleo urbano cosmopolita. Esse ecletismo urbano revela uma riqueza arquitetônica. Não são apenas esteticamente belos. Além de contar a história da cidade, são documentos arquitetônicos que se transformam em referências no fluxo do espaço urbano.”
Documentos que, pouco a pouco, vão se fixando, apenas, no passado. Ainda que a consciência preservacionista tenha chegado atrasada nas discussões juiz-foranas, como aponta Mascarenhas, há exemplares capazes de representar todos os períodos pelos quais a cidade passou. “Não dá para transformar a cidade toda num museu, isso é certo. E é preciso pensar, também, na preservação pelo uso”, destaca o arquiteto.
“No canteiro de obras das edificações antigas, havia artesãos que tomavam decisões no momento da construção”, recorda Arbach. “Hoje, com a massificação das edificações, a tendência é se tornarem pasteurizadas, insossas e semelhantes, eliminando referências visuais e espaciais”, completa o artista visual, certo da relevância das sutilezas na paisagem urbana. “O surgimento desse espaço impessoal dissemina o anonimato do cidadão”, alerta, ainda, o professor.
Os revestimentos no cotidiano profissional de Rogério Mascarenhas, no entanto, não servem apenas para criar a proteção de um prédio, mas para torná-lo singular. “São elementos que dão personalidade a uma edificação. A escolha depende da simbologia que se deseja aplicar na arquitetura”, explica. Misto de técnica e afeto, fatores sob os quais se erguem as memórias. No dia em que Juiz de Fora completa 167 anos, a Tribuna focaliza alguns revestimentos que ajudam a dar acabamento à narrativa da cidade. Detalhes que tocam quando são tocados. Pelas mãos, pelos olhos ou pelas lembranças.
Azul e branco das raízes coloniais
Símbolos de nobreza. Os azulejos trazidos de Portugal para o Brasil representavam, no período colonial, apuro estético, melhor padrão de gosto e, principalmente, asseio e práticas higiênicas ideais. Serviam, também, para conter as corrosões provocadas pela ação de chuvas e sol, características do clima tropical. Segundo Gilberto Freyre em seu “Casa grande e senzala”, a azulejaria lusitana, nos característicos branco e azul, tornou-se identificação da presença do “Novo Mundo”. Presente em diferentes edificações locais, o azulejo tem um de seus endereços mais marcantes no prédio da esquina das avenidas Itamar Franco e Rio Branco. Lugar da nobreza, tanto pela localização historicamente alinhada às classes mais altas da cidade, quanto por servir de moradia ao ex-presidente juiz-forano. Os mesmos azulejos a denunciar o processo colonizador reaparecem no painel “As quatro estações”, de Cândido Portinari, denunciando o novo olhar para as peças que o modernismo foi capaz de dar. “Arquitetos começaram a utilizar este material não só como elemento funcional, mas também como um material nobre que serviria magnificamente como suporte a novas expressões plásticas, criando uma conexão entre arquitetura e arte, a arte da azulejaria”, defende a professora da Universidade de Taubaté Liliane Simi Amaral em sua pesquisa “Arquitetura e arte decorativa do azulejo no Brasil”.
Pedra sobre pedra, tijolos sobre tijolos
A grande muralha retoma o século XIX e servia para dividir a rua da escola. Aos pés do Morro do Cristo, o Colégio Cristo Redentor foi inaugurado quando Juiz de Fora somava 41 anos e num momento em que a industrialização tomava fôlego, fortemente influenciada pelos ingleses que também serviam de referência à agigantada construção de pedra que desce da Rua Olegário Maciel pela Halfeld e adentra a escola. Pedras que retornam na segunda metade do século XX, ordenadas ou não, em residências do Bom Pastor. Numa outra ponta, outra instituição de ensino, o Colégio Santa Catarina, aberto em 1909, faz referência à força motriz das tantas fábricas que tomaram Juiz de Fora. O tijolo aparente – pintado como os da atual configuração do prédio da Bernardo Mascarenhas – está presente nas construções alemãs, de onde vieram as religiosas da Congregação de Santa Catarina afim de educar os filhos dos colonos imigrantes. Projetado pela Companhia Pantaleone Arcuri, o prédio e seus bem cuidados tijolinhos também dizem de uma das maiores construtoras da região, responsável pela presença de outros imponentes casarões, como o Cine-Theatro Central, cartão-postal de Juiz de Fora.
O ecletismo de relevo
Enquanto o agigantado muro do Cemitério Municipal, em branco com relevo a emular pedras, guarda consigo certa estranheza e o peso da dor que o prédio representa, o muro e as paredes do casarão bege de número 3.103 da Avenida Rio Branco preservam a graciosidade de uma construção repleta de curiosos detalhes, incluindo as depressões geométricas que tomam conta de toda a sua fachada. Em comum, no entanto, as duas construções exibem o relevo como um de seus elementos arquitetônicos, numa abundância característica do ecletismo tão presente na cidade. “O Estilo Eclético foi difundido pela presença dos imigrantes que vieram integrar a população local da cidade. Porém, fica evidente que, apesar dos construtores Arcuri terem desempenhado de forma intensa na composição deste núcleo histórico, existiam outros importantes construtores, arquitetos, engenheiros e mestres-de-obras atuando nas edificações locais com uma tendência a seguir os princípios do estilo originário da Europa”, sugere a pesquisadora Ana Lúcia Fiorot de Souza em “Estilo eclético na arquitetura de Juiz de Fora”.
Pastilhas de modernidades
Fragmentados, os desenhos que ornamentam muitas construções pela cidade são resultado de um exercício paciente e delicado. A arte de reunir pastilhas. No Edifício Kyrillos, no número 1.894 da Avenida Rio Branco, os pequeninos quadrados em cerâmicas branca e preta criaram cubos em contraste. No Edifício Clube Juiz de Fora, no encontro do Calçadão com a Avenida Rio Branco, Candido Portinari fez, com três cores (branco, marrom e amarelo) cavalos trotando em todos os andares do prédio. Colorido e exuberante, o desenho de Di Cavalcanti ganha o Marco do Centenário, no Poço Rico, em projeto idealizado por Arthur Arcuri, com observações de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, três modernistas que levaram às últimas consequências a utilização das pastilhas e, principalmente, dos mosaicos, que enfeitam prédios na área central de Juiz de Fora e residências no Bom Pastor Granbery. Pastilhas onipresentes nas décadas de 1950 e 1960, quando uniam arte e arquitetura, e também nas décadas seguintes, em variadas edificações, como os condomínios do alto da Rua Olegário Maciel, onde as pastilhas se exibem primordialmente funcionais.
Brasilidade que transpassa paredes
Unindo a primeira sílaba do último sobrenome dos engenheiros Amadeu Oliveira Coimbra, Ernesto August Boeckmann e Antônio de Góis criou-se a palavra cobogó. Idealizadores da espécie de tijolo que permite a entrada de luz solar e ventilação natural nas construções, os três se fazem presentes em projetos como o das varandas do número 21 da Rua Dr. José Procópio Teixeira, no Bom Pastor, bairro onde as peças são facilmente encontradas. Bastante utilizados na arquitetura moderna, os cobogós estão no projeto inicial do Campus da UFJF, em prédios como os das faculdades de Letras e Comunicação Social.
Também estão no hall de entrada do Edifício do Banco Mineiro de Produção, na parte baixa da Rua Halfeld, em peças de cerâmica amarelas. Estão nas construções mais pobres, como forma de manutenção da ventilação e da privacidade. Estão na contemporaneidade, acolhidas como elemento “retrô-chic”. “O cobogó é um material muito interessante, e hoje há vários modelos, dos mais populares aos mais sofisticados, uns até assinados por famosos designers. Tenho usado bastante nos meus mais recentes projetos”, pontua o arquiteto Rogério Mascarenhas.
Abstratas esculturas
O pequeno prédio que recebeu a numeração 589 da Rua Espírito Santo passaria despercebido não fosse a fachada em relevo vermelho. Da mesma forma, passaria invisível o edifício de número 79, na Rua Barão de Juiz de Fora, paralela à Avenida Brasil, no Santos Anjos, não fosse a forma abstrata em relevo pintado de cinza em toda a sua extensão. Texturas em revestimentos que marcaram as construções da década de 1970. Elementos desenvolvidos em cimento, presentes em edificações simples e também nas mais suntuosas. Desenhos triviais, formas instigantes, esculturas cotidianas, elementos contra o esgotamento da paisagem.