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A rua vestida de cores

a frente da normandi monica e liliane bara presenciam o dominio dos tecidos importados

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À frente da Normandi, Mônica e Liliane Bara presenciam o domínio dos tecidos importados
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À frente da Normandi, Mônica e Liliane Bara presenciam o domínio dos tecidos importados

Quando embarcou no navio que o faria cruzar o Atlântico, Youssef Hanna Bara deixava para trás seus pais, alguns irmãos, muitos outros parentes, a Síria natal e o nome. Aos 17 assumia-se José, como os brasileiros entenderiam num português que ele demorou a aprender. Ao lado do irmão Georges, rumava a Juiz de Fora nas primeiras décadas do século XX. Encontraria Nagib, o irmão que chegara antes e já havia prosperado ao ponto de se tornar empresário, dono do já extinto Bazar São Jorge, onde ambos trabalhariam.

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José, que era Youssef, fez como fizeram tanto outros conterrâneos seus e criou a Normandi, uma das resistentes lojas de tecido a ocupar a Marechal Deodoro, onde famílias como os Hallack, os Arbex, os Mockdeci e os Cury abriram negócios como A Esquina da Moda, A Vencedora, Bazar São João, Casa André, Casa Aristocrata, Casa Aurora, Casa Chic, Casa Combate, Casa Dois Irmãos, Casa Mineira, Casa Petrus, Confecções Royal, Loja Santa Branca, Marabá, Loja Síria, Loja Valenciana, Luva Vermelha, Naine’s, dentre outras.

Uma rua e numerosas cores que dão conta de uma Juiz de Fora que era aposta de vida inteira. No segundo capítulo da série “História fio a fio”, os tecidos que integram tantas memórias afetivas e familiares dizem de um lugar construído por locais, mas também por imigrantes. “Meu pai e meus tios vieram da Síria para fugir da guerra, numa situação bem difícil, sem saber falar a língua. Vieram de um sofrimento que fazia com que eles dessem valor a cada centavo que ganhavam. Largaram tudo, só voltaram mais tarde, para visitar. Resolveram se abrasileirar mesmo e foram muito acolhidos”, conta a filha de Youssef, Mônica Bara, que junto da irmã Liliane comanda a Normandi.

Pais e filhos entre panos

Nos anos iniciais do século passado, a indústria têxtil na cidade empregava, em 19 fábricas, cerca de três mil pessoas, a grande maioria proveniente de países europeus. “O motor faz mover 64 teares e ao redor movem-se 150 pessoas, a maior parte moças e meninas, umas brasileiras, outras espanholas e italianas”, destaca um folhetim da época. Ao mesmo tempo, nas lojas da Marechal, a predominância era de famílias inteiras, sírias e libanesas. “Viemos desde pequenas, fomos tomando gosto, as circunstâncias fizeram a gente fincar raízes, e, com a morte deles, assumimos”, recorda Mônica Bara.

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Entre panos, Mônica, Liliane e os três irmãos foram criados. Aprenderam nomes, cortes, medidas e combinações que não sabem a quem legar. Sem filhos, elas olham para os anos que chegam com certa incerteza, ainda que um sobrinho já esteja se envolvendo com o negócio. “Não sabemos como será o futuro”, pontua Mônica. Em verdade, nem os tecidos parecem dizer do futuro. “Ninguém monta mais loja de tecidos”, afirma Liliane, comentando a própria queda da indústria têxtil nacional.

A medida da sensibilidade

Em mais de 50 anos, Antônio Arbex, que herdou do pai a Marabá, na parte alta da rua, viu a força, mas também o declínio do tecido nacional. Viu conterrâneos de seu pai, Abdo Arbex, abrirem e fecharem as portas. Viu os seis irmãos investirem em outras frentes. Viu quatro filhos optarem por outros negócios, mas também viu o filho Ricardo lhe assegurar a continuidade de uma loja com mais de sete décadas de vida. “Tudo mudou. A maioria dos tecidos de hoje vem importada da China, Taiwan. Uns 95% vêm de fora”, constata.

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Aos 50, Catarina Andrade, que trabalha na loja de Antônio, passou pelas salas de aula e preferiu os tecidos. A escolha fez há mais de duas décadas. “Fiz um teste de matemática num papel de pão, com uma continha dividindo metragem, e ganhei a oportunidade. Larguei o magistério”, conta ela, que em sua trajetória só trabalhou em duas casas, o bastante para aprender sobre um universo que não encanta apenas os que encostam as mãos nas tramas de fios. “É preciso ter percepção e estar antenado para o que está sendo usado no país e no mundo. Além do toque para reconhecer o tecido”, diz, para logo demonstrar conhecimento: “Pouca gente sabe que a viscose é um tecido natural, mas não vem do algodão e sim da celulose da madeira”.

Retrato do passado, as lojas de tecidos que pouco a pouco vão desaparecendo da paisagem da cidade, assim como o material que vendem, refletem um lugar de riquezas, nos quais os imigrantes tanto acreditavam. Retrato do presente, representam uma Juiz de Fora que, em seus 166 anos, completados nesta terça, é de rendas e também de retalhos.

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