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Valéria Faria conta uma história de JF através seus armarinhos e lojas de tecidos

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A capa de “Sianinhas e saudades” (Foto: Divulgação)
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Nivalda não tinha a costura como ofício, mas fazia roupas para si e para a família. Também costumava contratar uma profissional para que fosse à sua casa produzir algumas peças. Nas memórias de Valéria, sua filha, estão vivas as cenas em que as duas andavam pelas ruas do Centro de Juiz de Fora visitando armarinhos e lojas de tecido. “Lembro-me que um dos funcionários da Casas Regente, o Sebastião, me chamava de Valerinha e me oferecia um sorvetinho. Até hoje, quando passo na Marechal em frente à Marabá, onde ele trabalha, ouço: ‘Oi Valéria! Como vai a dona Nivalda?’. Há 50 anos ele trabalha vendendo tecidos na Marechal. Como conseguiu guardar os nomes das freguesas? Isso é incrível!”, exclama Valéria Faria. “Essa é a relação de afeto que tenho com as pessoas, com os armarinhos e com as lojas de tecido”, explica a artista, que publica agora “Sinaninhas e saudades: armarinhos e tecidos tradicionais no centro histórico de Juiz de Fora”, livro no qual reúne fotografias e recortes capazes de narrar passado e presente, fio a fio, a história de uma cidade intimamente ligada aos tecidos.

Aparecida era costureira profissional e por longos anos manteve em casa seu ateliê. Nas minhas memórias estão vivos os moldes, os cortes, as roupas pespontadas, as freguesas entrando e saindo, o som das máquinas e também Sebastião, que tão gentilmente atendia minha avó enquanto eu deslizava minhas mãos sentindo a textura de cada um daqueles grandes rolos coloridos. Recordações que retomo no prefácio da obra que revolve memórias pessoais e coletivas. O têxtil sempre reivindica a primeira pessoa na Juiz de Fora cujo passado envolve uma potente indústria e uma imigração sírio-libanesa dedicada ao volumoso comércio dos tecidos. Na pesquisa de Valéria estão inseridos os debates sobre patrimônio, espaço urbano e estética, ontem e hoje. “Essas lojas têm marcas vernaculares, históricas e artísticas que configuram a própria identidade da cidade”, observa ela, pró-reitora de Cultura e professora do Instituto de Artes e Design da UFJF.

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Jamil Haddad e a filha Rosângela em frente à Casa da Seda, na Rua Marechal Deodoro (Foto: Valéria Faria/Divulgação)

Bordados, bonecas, botões e obras de arte

Um parque temático. Com seus botões, linhas, plumas, fantasias e incontáveis objetos de tamanhos, cores e formas distintas, a Casa Combate era atraente para Valerinha e manteve-se assim para Valéria, que em “Sianinhas e saudades” registra a excentricidade de uma loja que reúne máscaras, bordados, partes de bonecas e até mesmo um morcego de plástico. Se para a menina o lugar escondia a magia própria dos mundos imaginários, para a adulta, preserva o valor de uma obra de arte. “Sempre que parava para observar as vitrines da loja O Pirralho, que ladeavam o Cine-Theatro Central, pensava que elas poderiam ser deslocadas dali diretamente para uma bienal de arte”, defende a artista em seu texto de apresentação do trabalho de 344 páginas. “Esse é o resultado de longos anos de pesquisa. Quando comecei a fotografar a cidade, não tinha dimensão do que faria. E já se passaram mais de 20 anos”, contabiliza, apontando para o registro mais antigo que fez para o livro: o de Seu Jamil Haddad, libanês que em 1952 inaugurou a Loja da Seda.

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O sorriso fácil de Seu Sebastião, que vende tecidos na Rua Marechal há 50 anos (Foto: Valéria Faria/Divulgação)

Era 2004 e Valéria descia a Rua Marechal Deodoro com a câmera na bolsa quando avistou o senhor no interior da loja tomada de panos. Pediu para fotografá-lo e ele aceitou, um pouco desconfiado. Logo mais chegou a filha, Rosângela, e também posou para a foto. Havia uma urgência que Valéria só compreendeu quando, poucos anos depois, seu Jamil se foi, deixando a loja para a filha, que tempos mais tarde reformou todo o espaço. “A Loja da Seda é a que sofreu a maior transformação. Hoje não encontramos mais todos os tecidos expostos. A Marabá continua muito parecida com o que sempre foi. A Casa Chic, também, e inclusive tem piso hidráulico ainda hoje. Os armarinhos, como a Casa Combate, mantêm as vitrines de madeira, com as caixinhas. A Casa Combate, aliás, vem sobrevivendo ao tempo com perfeição, com muito cuidado”, destaca, recordando-se de outro endereço, a Perfumaria Delmar, na Galeria Ítala. “Fui fotografá-la e, no dia seguinte, ela fechou as portas. Entrou uma loja de telefonia e ela passou para o outro lado, mas mudou completamente o visual. Eu frequentava desde os tempos de criança, com a minha mãe, que conhecia a dona da loja”, lembra.

Aquela mudança, para Valéria, representou mais que o desaparecimento de um referencial. “A mim causa muita tristeza chegar numa rua que tinha lojas ou casas antigas e ver que, de um dia para o outro, tudo não existe mais. A gente perde com esse apagamento da cidade”, avalia a artista e pesquisadora, apontando para um trabalho que é resgate e também denúncia, documento e também tratado. “Às vezes os próprios donos dessas lojas não percebem, mas elas se diferenciam de um comércio idêntico em qualquer lugar do mundo. É o que faz o desenho da cidade e caracteriza Juiz de Fora com sua geografia tão peculiar das galerias. Há um traço na cidade que está sendo perdido, porque muitas dessas lojas de caráter e tradição não conseguem se manter frente a esse comércio muito comum, de produtos da China, sem muita identidade”, analisa. E se posiciona: “Sou contra a pasteurização”.

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Vitrine do tradicional amarinho O Pirralho, que ficava na Rua São João (Foto: Valéria Faria/Divulgação)

Placas, sapatos e moldes aos montes

“Vai fechar?”, perguntou Valéria Faria ao passar por uma barbearia em obra na Praça da Estação. Como resposta ouviu que estavam apenas trocando o piso, já antigo e desgastado. Não era “apenas”, logo indignou-se, já que se tratava de um ladrilho hidráulico de grande valor histórico. Tempos depois, quando o lugar fechou as portas, a artista se deu conta de que a Juiz de Fora que conhecia e que a família lhe contava, pouco a pouco, transformava-se num retrato na parede. Um flash. E Valéria saiu a fotografar o Centro Histórico local. “Comecei a setorizar, trabalhando tematicamente. Em 2014 fiz o primeiro livro, das 13 barbearias do Centro Histórico. O que chamo das lojas de tradição estão concentradas nessa região da cidade. Ao longo do tempo também fui reunindo muito material para o livro que estou lançando agora e já tenho muita coisa coletada e pronta para um terceiro projeto, referentes aos hotéis e bares da cidade”, pontua a artista, que para a impressão de “Sianinhas e saudades” contou com recursos da Lei Murilo Mendes, enquanto o projeto de pesquisa “Memórias urbanas no comércio tradicional de Juiz de Fora” teve o financiamento da Fapemig.

Dona Mounira, da Casa Chic (Foto: Valéria Faria/Divulgação)

Além do valor afetivo, o Centro da cidade preservava uma importante porção da narrativa familiar de Valéria. A Marechal, por onde andava com a mãe Nivalda visitando lojas e armarinhos, também era endereço da Calçados Cabocla, da avó Rosinha. “Quando a loja fechou, herdei a placa que está comigo até hoje. É uma pena que eu não possa herdar as placas de todas as lojas que fecham”, diz, aos risos. “Era uma placa maravilhosa, de neon vermelho e azul”, descreve ela, sobrinha de Afonsinho, que também tinha uma loja no Centro, a Minas Moldes. “Era um exímio alfaiate que fazia ternos perfeitos. Ele tentou a vida inteira fazer com que o negócio desse certo. Os alfaiates foram perdendo espaço, poucos hoje resistem, e ele precisou fechar a firma. Herdei todos os moldes, os carimbos e algumas roupas e fui transformando em obras de arte, ressignificando os pertences de família”, conta ela, que levou as heranças do tio para a exposição “Para sempre Singer”, de 2003.

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“Nosso Senhor dos Mesmos Passos”, por sua vez, reúne outra herança: 40 sapatos do pai, que usava um par até que ficasse surrado e depois colocava numa caixa e arquivava. Comprava outro, usava, usava, usava e guardava para não mais mexer. Logo que o pai morreu, Valéria encontrou as pilhas de caixas. “Um inventário dos passos. Fiquei pensando por onde andaram os sapatos ao longo de toda a vida do meu pai. Eles conheciam muito mais meu pai do que eu mesma. Comecei, então, a criar essa instalação, colocando fotografias minhas também”, rememora a autora, que no novo livro agrupa fotos de álbuns de família, fotografias de blogs de resgate da memória local, recortes de jornais e de catálogos telefônicos com nomes de alfaiates e malharias dos anos 1960. Num exercício memorialístico, Valéria fala muito de si, de suas muitas acumulações, e também de mim, de minha avó e de tantos homens e mulheres cujas vidas são recortadas pelo corte e pela costura. Ao tornar perene as narrativas que ouvimos na mesa de almoço, no sofá da sala, sobre a tia que vivia à máquina, a avó que fazia as roupas de todos, a mãe que pregava botão a botão, Valéria dribla a efemeridade da vida. A artista eterniza homens e mulheres comuns, Nivaldas, Aparecidas, Sebastiãos, Jamils, Rosângelas e tantos outros. “Gosto muito das coisas do tempo exatamente pela resistência que elas têm”, indica. E finaliza: “Nós vamos embora e elas ficam para contar história.”

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