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‘O tigre branco’, da Netflix, expõe o quase intransponível abismo social da Índia

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Ao conseguir o emprego de motorista, Balram (Adarsh Gourav) passa a entender como funcionam as estruturas de poder e servidão na Índia (Foto: Divulgação)
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Índia e Brasil estão a mais de um continente de distância, e o pouco que se sabe ou se imagina sobre o país asiático vem, principalmente, de “Quem quer ser um milionário?” (2008), fábula dirigida por Danny Boyle e grande vencedora do Oscar em 2009. “Caminho das Índias”, novela de Glória Perez, nem mereceria a citação pelo pavoroso pastiche que a novelista faz ao abordar outras culturas em seus folhetins. “O tigre branco”, longa que estreou na Netflix na última sexta-feira (22), não deixa de ser uma fábula a exemplo do filme dirigido pelo cineasta inglês; porém, é muito mais cruel, visceral e sombrio em pouco mais de duas horas de duração. E não há um herói na história, apesar de ser impossível não torcer para o protagonista, o motorista Balram (Adarsh Gourav).

“Não acredite nem por um segundo que há um jogo milionário de perguntas e respostas que você pode ganhar para poder sair daqui”, diz Balram, em off, em determinado momento do longa, a fim de deixar claro que há uma distância monumental em relação à história do garoto miserável que tenta a sorte no “Show do milhão” indiano. A melhor comparação seria com “Parasita”, de Bong Joon-Ho, pela trama que envolve diferenças de classe, submissão, ressentimento, inveja, vingança e personagens (quase totalmente) desprovidos de caráter – além da crítica escancarada ao modelo de exploração perpetuado pelo capitalismo.

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Com direção e roteiro de Ramin Bahrani (“99 casas”, “Fahrenheit 451”), o longa é adaptação do homônimo romance de estreia do indo-australiano Aravind Adiga, vencedor em 2008 do Man Booker Prize, que mostra com crueza uma Índia que nada tem a ver com os clichês quando se pensa no país, como a suntuosidade do Taj Mahal, a religião, as vacas que andam por onde bem entendem, as roupas coloridas, a dança e Bollywood. É um país de extrema miséria e desigualdade, que não oferece os serviços essenciais à população e, como dito no início do longa, com sérios problemas de higiene. E desigualdade social e econômica brutal, mais um sistema de castas que impossibilita a ascensão social.

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Miséria e servidão

Mas nada disso é sabido pelo espectador no início da história, que começa em 2007, em Nova Déli, com Balram no banco de trás de um carro, vestido como marajá, pouco antes de uma tragédia. A história pula então para 2010, em Bangalore, com o protagonista, já milionário, escrevendo um e-mail para o primeiro-ministro da China, que em breve chegaria à Índia para uma visita de negócios. É então que ele passa a contar sua história e entendemos como chegou até ali, ao entender como as coisas funcionam em seu país.

O espectador é levado até a infância de Balram no paupérrimo vilarejo de Laxmangarh. Ele é uma das poucas crianças que aprendeu a ler em inglês, e por isso é elogiado pelo professor, que o compara ao raríssimo – e por isso mesmo especial – tigre branco, com a promessa de levá-lo para estudar na capital. Porém, o garoto logo é obrigado pela avó exploradora a abandonar a escola e seguir os passos do irmão mais velho, quebrando pedras de carvão na loja de chá da família.

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Balram cresce com o objetivo de ter um futuro melhor, e vislumbra a oportunidade após mais uma visita da família de gângsters/mafiosos ao vilarejo para explorar a população local. Ele convence a avó a financiar aulas, e se oferece – com sucesso – para ser o motorista de Ashok (Rajkummar Rao), filho mais novo do mafioso e que retornou “ocidentalizado” após estudar nos Estados Unidos, onde se casou com a descendente de indianos Pinky (Priyanka Chopra Jonas), que tem uma visão que entra em choque com a realidade local.

A nova vida, porém, não é um mar de rosas. Não demora muito para o motorista descobrir que, na Índia, só existem duas castas: a dos ricos e a dos pobres, que estão ali apenas para servir das formas mais humilhantes e degradantes, seja apanhando ou tendo que banhar os pés do patrão ou sentando no chão enquanto todos relaxam nos sofás. A comparação feita com as galinhas logo no início do filme, incapazes de se rebelar contra o destino revelado a elas, faz todo o sentido.

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Mas Balram não é bobo. Ele suporta todas as humilhações, o fato de ter que dormir em um porão infestado de baratas no hotel luxuoso onde os patrões estão instalados, com um sorriso que esconde a perspicácia de alguém que observa e entende como funciona o sistema e não tem escrúpulos para alcançar seus objetivos. O motorista entende que a Índia é um país que não oferece oportunidade a quem nasceu na miséria, que os ricos têm todas as regalias e não se interessam em mudar o estado das coisas, e que a “maior democracia do mundo” é, na verdade, um antro de corrupção, seja na figura da “Grande Socialista” que governa a nação ou dos funcionários públicos em geral.

“‘Parasita’ indiano”?

Nesse contexto, as semelhanças entre “O tigre branco” e “Parasita” são muitas. Balram é esperto o suficiente para saber que seu destino, se depender dos patrões, será sempre a miséria e humilhação, agravado ainda mais pelo sistema de castas indiano. Ele vê o dinheiro que deveria ir para o povo ser usado para corromper agentes públicos, pouco interessados no bem-estar da população. E percebe, depois da tragédia ocorrida no meio da história, que será tratado como um “igual” apenas quando for conveniente aos patrões, que o descartam e o ameaçam em seguida. Por isso, o sorriso servil do motorista passa, com o decorrer da trama, a esconder um ódio, ressentimento e inveja que vão descambar no momento mais violento e catártico do filme.

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Afinal, Balram aprendeu que a vida não é como um musical de Bollywood ou a fantasia de “Quem quer ser um milionário?”: ela pode ser cruel, injusta, suja e insensível, e o longa de Ramin Bahrani acerta o alvo ao mostrar uma Índia que o olhar estrangeiro muitas vezes não alcança.

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