Sem o ronco da cuíca, sem o compasso do cavaquinho, sem o soar dos tambores. Sem tristeza, sem mágoas e sem lágrimas. Aos 77 anos, Armando Fernandes Aguiar ouve, rotineiramente, alguns cantos de passarinhos que insistem em passar pelas árvores próximas, e o barulho dos carros na rua em frente a sua casa. Mamão, um dos mais antigos e reconhecidos sambistas de Juiz de Fora, diz ter os pés no chão ao se despedir dos carnavais. A última folia já faz cinco anos, quando o Bloco do Beco, que ajudou a criar, homenageou-lhe no enredo. “O carnaval que a gente fazia quando era mais novo era de sair cedo na sexta-feira e só voltar na segunda. Muita bebida, mulher e samba. Já foi. Cada um tem um tempo. Meu tempo passou. É importante saber a hora de parar”, diz.
Casado há 55 anos, pai de três filhos, hoje pouco sai de casa. “Tenho um filho que é especial e precisa muito de mim. Resolvi ficar com ele”, conta. “Parei, praticamente, de frequentar botequim, que era meu laboratório. Hoje componho muito raramente. Dei por encerrada a carreira”, completa ele, aposentado pela Prefeitura, onde desempenhou a função de coordenador do carnaval. Espectador e atração, Mamão, com seus quatro discos lançados, guarda nas lembranças uma história repleta de confetes e serpentinas. Este ano não verá a banda passar. Não faz mal. Ainda hoje recolhe as cinzas da vida-carnaval.
‘Dei um aperto de saudade’
Era um dos “mascarados” naquele carnaval de 1966, que inaugurava os desfiles competitivos em Juiz de Fora. Ainda jovem, Mamão integrava a escola de samba Feliz Lembrança, campeã daquele ano. “Foi uma revolução. O José Carlos de Lery Guimarães era muito criativo e já tinha feito um espetáculo no campo do Sport, chamado ‘Cristo total’: uma encenação com muita música. Ele e o Nelson Silva fizeram o enredo ‘Mascarada veneziana’, e foi muito impactante”, recorda. “Comecei a participar da Feliz Lembrança com uns 11 anos, porque meu pai era vice-presidente da escola. Ele gostava muito de samba e passou isso para nós”, conta ele, nascido no Manoel Honório e um dos nove filhos. Passados três anos, colocou palavras no papel. “Comecei a fazer música por conta do Festival de Música Popular Brasileira de Juiz de Fora”, pontua. No primeiro, de 1968, não participou. Em 1969 fez “Adeus diferente”, gravada por Ellen de Lima, e ficou em quinto lugar. Em 1970, ficou em quarto. Em 1971, terceiro. Em 1972, com “Tristeza pé no chão”, venceu, como em 1973, com “Baianeiro”, gravada por Nadinho da Ilha, inspirada em Itamar Franco. “Na primeira eleição para o senado, num debate em Belo Horizonte, o oponente disse que o Itamar nem mineiro era. ‘Ele é baianeiro, metade baiano, metade mineiro’. Era verdade, porque ele nasceu num navio. Fiquei com a ideia na cabeça e próximo ao festival escrevi a música: ‘Nasci ao meio-dia, na divisa de Minas com Bahia, eu sou baianeiro, metade baiano, metade mineiro’.”
‘A minha vida na avenida’
Era 1970, Nelson Silva havia morrido em outubro do ano anterior e a escola passava por diversas dificuldades. Mamão foi, então, convidado a botar a escola na rua. “A Feliz Lembrança saiu muito pobre, com as meninas sem sapato. Quando chegamos perto da Prefeitura, ali na Rio Branco, um amigo disse que estava parecendo um bloco tristeza pé no chão”, lembra. Deu samba. Passou algum tempo, e, num barzinho da Rua São João, a letra se achegou. “Tinha um cara com um tamborim, e eu falei: ‘Afina esse negócio aí direitinho. Dá um aperto de saudade nele’. Anotei para não esquecer e comecei a escrever.” Tarde da noite, já de porre, cantava a composição inscrita no festival de 1972. Júlio Hungria, crítico de música do “Jornal do Brasil”, coordenava o evento, e Mamão pediu a ele que apresentasse a canção para Elizeth Cardoso, Elza Soares e, por último, Clara Nunes. “Se nenhuma das três quiser, estou fora”, disse. Numa mesma sala, Sidney Miller (respeitado compositor) pediu para ouvir a música de Mamão, e Júlio colocou para tocar. Clara Nunes ouviu e disse que gostou, achando ser de Miller. A cantora convenceu-se rapidamente de que valia a pena defender a canção. Logo a imprensa já divulgava a parceria. “Só a conheci aqui na cidade, num hotel da Batista de Oliveira”, recorda o juiz-forano. No mesmo ano, a gigante EMI-Odeon gravou o LP de Clara Nunes, e a música de Mamão, antes na reserva, acabou entrando no disco e na primeira faixa. “Vendeu disco feito água”, conta, ainda entusiasmado, lembrando-se de um tempo em que andava pelas ruas e ouvia sua canção.
‘Vai manter a tradição’
O sucesso maior de sua vida rendeu-lhe o “Mamão – Som & Chopp”. Com o dinheiro inicial, montou, ao lado dos irmãos, uma boate na cobertura do Edifício Clube Juiz de Fora. “A fila, na Rio Branco, ia pela avenida, descia a Marechal e parava em frente aos Correios”, pontua. Os direitos autorais viraram tradição em casa. “Recebo até hoje pela execução. Nesses mais de 40 anos, sempre recebi. Em dezembro, ganhei R$ 4 mil e poucos pelo trimestre”, conta ele, gravado por cantores como Alcione e Zeca Baleiro. Mamão, então, passou a fazer sambas-enredo para diversas escolas, como Partido Alto, Juventude Imperial e Castelo de Ouro. Ao lado de amigos, fundou o Beco. “Na época, queríamos valorizar o carnaval de rua. Usamos o bloco para fazer muitas críticas políticas. Era muito bom, todo mundo novinho, muita menina bonita. Mas tudo vai acabando, e isso é normal”, observa, encarando com naturalidade a folia dos dias que correm. “O cara prefere ficar em casa, sem gastar dinheiro e com segurança, assistindo aos desfiles do Brasil inteiro. Isso é o progresso, as pessoas vão tomando novas atitudes”, defende. Vai manter a tradição? Sim, parece responder ao contar sua trajetória no sofá de casa, enquanto o filho dorme. Vai, porque histórias como a dele não deixam o samba morrer.