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Outras ideias com Vânia Derby Dutra

Foto: Leonardo Costa
Aos 83 anos, Vânia se prepara para legar instituição ao “neto” adotivo (Foto: Leonardo Costa)
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Em agosto de 1978, uma Kombi, sem os bancos centrais, estancou na porta do Instituto Maria, em São Mateus, trazendo dez crianças com cerca de 1 ano, vindas da Febem de Belo Horizonte. As condições dentro do veículo eram as piores possíveis. Dos 50 pequenos que vieram, em viagens diferentes mas na mesma situação, Wellington com seus 7 meses era o mais debilitado. “Ele ficou um mês no hospital. Por ser o mais doentinho, começamos a pegar mais no colo. No primeiro mês, com o frio, eu o colocava nos braços, entre o casaco de lã e a blusa, e ele ficava quietinho”, recorda-se Vânia Derby Dutra, diante do homem com 38 anos. Das milhares de crianças que passaram pelos cuidados de Vânia e sua equipe, Wellignton foi o único a dividir o mesmo teto que ela. “Fui adotado naquele ano, e ela sempre me pediu para que eu a chamasse de vó. Dizia que eu tinha minha mãe e que era para eu sempre procurá-la. Ela nunca escondeu de mim a verdade. Tenho muito orgulho de ser filho dessa casa, dessa história”, emociona-se ele, que ganhou o sobrenome de Vânia, Derby, herdado do pai, Orvile, um homem que legou não apenas imóveis pela cidade, mas iniciativa e força. “Herdamos tudo”, afirma a senhora de 83 anos, querendo dizer da responsabilidade de cuidar do outro, da necessidade de progredir no assistencialismo e do dilema de arranjar fundos para o bem. “Sempre aperta. Aí a gente não dorme. A Prefeitura ajuda, e a iniciativa privada, também, além daqueles que cooperam mensalmente”, conta ela, que após a morte da irmã Rakel, em abril, comanda sozinha a gigantesca casa erguida em 1944 e totalmente reformada no último ano.

Orvile

Como Wellington, Vânia também cresceu no Instituto Maria. Era a casa do pai. “Ele nasceu em Rio Novo, numa família de 11 filhos. Meu avô era professor de francês na Escola Normal, e meu pai foi ser carroceiro. Com a inteligência, foi crescendo. Trabalhou na Casa do Neto, um secos e molhados que vendia de tamanco a comida. Ele chegava às 6h, trabalhava até as 20h e subia para a Academia de Comércio, onde estudava para ser guarda-livros (hoje, contador). Passou a trabalhar na Construtora José Abramo e começou a entender de negócio. Casou com minha mãe, uma costureira, e foi prosperando”, conta Vânia, sobre o homem que construiu para si e para os outros. “Meu pai fundou a Fundação Espírita João de Freitas, o Instituto Jesus, o Centro Espírita Venâncio Café, a Sopa dos Pobres, o Grupo Espírita Amor aos Desencarnados e o Instituto Maria. Para fundar uma casa com o nome espírita há 85 anos, como foi com o João de Freitas, ele levou muita pedrada. As freguesas da minha mãe, para fazerem roupas com ela, tinham que pedir licença ao bispo”, ri a mulher. “Meu pai é quem comprou esse terreno. Aqui era uma fazenda, um espaço de morro e foi ele quem tirou cinco mil carroças de terra”, lembra-se. Após sete horas de viagem, Orvile desembarcou no Rio de Janeiro e foi bater na porta de um ascendente arquiteto. “Ele pediu um corredor com vidros dos dois lados, para que olhasse o interior sem precisar abrir a porta”, diz Vânia sobre o pedido do pai feito a ninguém menos que Oscar Niemeyer. “Meu pai era um atrevido”, brinca. “Garanto que ele está sentado ao meu lado. Não é metidez, mas não é qualquer um que tem um pai assim”, emociona-se ela, que há 43 anos despediu-se de Orvile e, há 33, de Aracy. Por que ele quis abrir uma instituição como essa?, pergunto. “Só lá em cima explica.”

Lívia

Lá em cima, onde está a explicação para a solidariedade do pai e para a afeição de Vânia por Wellington, também está Lívia. “Casei muito cedo, aos 17, com um viúvo que já tinha dois filhos. Saí da escola, onde estudava para contadora, e fui casar. Logo depois, fiquei grávida e tive varíola, com três meses de gestação. Deu a doença por dentro e por fora. Abriu feridas no meu corpo todo, sola dos pés, gengiva, nariz, olhos, debaixo da unha. Foi tão forte que quando colocaram o termômetro em mim, ele estourou. Cinco meses depois, a neném nasceu, com a doença, mas só viveu três dias. Dois anos depois, tive que tirar meio metro de intestino, por conta da varíola”, recorda-se Vânia. “Oito anos depois de seu desencarne, a Lívia veio numa reunião mediúnica me agradecer por aquele tempo que ficou ao meu lado. Era o resgate que nós precisávamos.”

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Zenilda

No mesmo prédio onde atende 147 crianças, de 0 a 5 anos, comprovadamente carentes, das 7h às 17h, e onde trabalham 35 profissionais, Vânia difunde a doutrina da qual o pai foi um dos maiores incentivadores em Juiz de Fora. Às segundas, terças e quartas, funciona o Centro Espírita da associação sem fins lucrativos, com estudos literários, reuniões mediúnicas e palestras públicas. “Fico mais três anos. Mas não penso muito no futuro. O que me interessa é o presente”, adianta-se ela, frente a frente com Wellington, que vindo do passado, quando a casa funcionava nos moldes de um internato, prepara-se para ser o futuro. Na época em que cerca de cem crianças viviam 24 horas no espaço, Orvile construiu um cinema, o Cine Paraíso, para servir de renda-extra para a instituição. Tempos outros: Vânia e a irmã Rakel procuraram outros meios. Wellington encontrará, ainda, outros. Caminhos para servir. “Não zelamos somente por essas crianças, as ensinamos a viver. Damos a base. E é uma alegria encontrar os meninos e meninas que passaram por aqui. Criei seis filhos da Zenilda. Todos deram certo. Há pouco tempo, ela trouxe o último filho para que ele se lembrasse de mim. Já está com 16 anos”, conta a avó dos filhos de Zenilda, de Wellignton e outras milhares de crianças.

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