Ícone do site Tribuna de Minas

‘A mulher do padre’, de Carol Rodrigues, escancara desconforto em ser criança

PUBLICIDADE

Ser criança pode ser desconfortável. Ser criança sendo uma menina precisando lidar com as mudanças do próprio corpo, com uma língua à qual não pertence e com tudo que não entende e não é capaz de traduzir do mundo, mais ainda. O desconforto vira um sentimento intenso que se transforma em raiva, estranheza, deslocamento – e também sensibilidade e vivacidade excepcionais. É o que mostra “A mulher do padre”, de Carol Rodrigues, livro que assume a voz da criança Lina, que vive nos anos 90, e que tenta registrar seus profusos pensamentos enquanto vive tudo. O mundo ao redor da personagem está em transformação, assim como ela, e os leitores são convidados a uma viagem a uma rica gama de detalhes que mais marcaram esse período através dos olhos daquela menina.

(Foto: Divulgação)

“A mulher do padre” leva o título justamente relembrando a provocação contida na brincadeira tão típica da infância, na qual quem chega por último sempre perde de alguma forma. É cercado de elementos como esse que Carol Rodrigues constrói a narrativa de Lina, que mora na Inglaterra com os pais, tem medo da vaca louca, pavor dos peixes que a mãe cozinha e que espera desconfiada a chegada do irmão. Seu olhar é inocente e cheio de frescor, mas isso em nada se aproxima de qualquer mistificação em torno de uma suposta “pureza” das crianças. Ela quer descobrir todas as coisas que a cercam e está disposta a arriscar tomar decisões terríveis para isso, como por exemplo tentar cortar o rabo de um gato para ver se cresce de volta como de uma lagartixa. Não faz por maldade, mas por um impulso irresistível de tentar entender todas as coisas que se mostram ainda tão ocultas ao seu redor.

PUBLICIDADE

Seu universo é composto também pelos vizinhos com nomes de príncipe, que gostam de brincar de médico com o corpo dela, e pela relação que ela tampouco entende entre seus pais. Lina também tem uma grande amiga, Janaína, com quem descobre que é possível, sim, partilhar um território em comum longe de casa. As lembranças do Brasil vão se misturando com as novas memórias na Inglaterra, e a vida de uma imigrante vai aparecendo pelo olhar dela.

PUBLICIDADE

Ao longo da jornada da menina, são consecutivas mudanças que vão marcando as suas vivências. Também o período histórico é turbulento – e o livro traz, como pano de fundo, o lançamento de fenômenos pop ou acontecimentos na política que são capazes de impactar o olhar de uma garotinha. O inesperado parece estar sempre estar a dois passos de Lina, e ela não desvia o caminho, pelo contrário – olha para o que está à sua frente sempre com curiosidade e querendo atribuir os nomes a partir do que entende.

Linguagem explosiva em ‘A mulher do padre’

Carol Rodrigues consegue assumir tão bem a voz de uma criança para a criação dessa história que, por vezes, os relatos parecem ter saído de conversas que nunca aconteceram entre adultos e crianças. As agitações e os medos são totalmente críveis, e passam por um sofrimento interno e uma tensão que parecem muito bem preservados pela autora.

PUBLICIDADE

Também o amadurecimento de Lina, sua passagem para a pré-adolescência e adolescência são retratados com muita consistência e imaginação, ainda conservando o frescor que a personagem tem. Os primeiros relacionamentos amorosos, as viagens com amigos e a vontade de provocar mudanças mostram como a personagem é bem conduzida, e tudo isso através de uma linguagem que evidencia um trabalho de criação de grande fôlego. Não há muita pontuação ou mesmo espaço para respirar enquanto Lina conta sua história, as palavras vão tentando acompanhar os raciocínios da jovem e seguem um ritmo único, por vezes inclusive misturando inglês e português.

No livro, a autora Carol Rodrigues assume a voz de uma criança que tenta entender o mundo à sua volta (Foto: Gabriela Barreto/Divulgação)

Sem vergonha

O livro também parece escancarar os momentos da vida em que compreendemos tão pouco e ainda aqueles que chegam a dar uma pontada de vergonha relembrar. Tudo que está mais escondido e represado vem à tona, porque Lina ainda é nova o suficiente para não saber o que não deve falar e que cuidados deve ter. Com o leitor, ela fala de todos os temas possíveis, sem qualquer julgamento moral que venha dela própria. É desse fervor que também surgem as reflexões mais dolorosas e se percebe uma solidão própria de ser criança.

PUBLICIDADE

Por tudo isso, “A mulher do padre” pode parecer um livro confuso – mas está longe disso, muito pelo contrário. A obra consegue captar uma surpreendente variedade de sentimentos com delicadeza e ritmo, e conectando a escrita com uma vivência muito mais coletiva do que parece, apesar do olhar tão particular de Lina. Com esse tom criativo e bem humorado, brincadeiras viram medos, receitas viram descobertas, relacionamentos viram disputas, irmãos viram brinquedos e repressões viram impulsos. Tensões viram palavras, letras viram peixes, memórias viram invenção, a vida vira escrita, talentos revelam um livro. E vice-versa.

Sair da versão mobile