Há podcasts para todos os gostos. Boletins informativos, entrevistas, “storytelling” e mesa de bar. Podcasts de divulgação científica, música, política internacional, jogos eletrônicos, horóscopo, cinema e morte. Pra comunistas, cristãos, anarquistas, macumbeiros e até celibatários involuntários. E há podcasts de contos eróticos. Não são podcasts pornográficos, vejam bem. Até porque a premissa é ser um contraponto às narrativas de prazer e corpos controladas pela indústria pornográfica. Embora alguns fetiches como voyeurismo, sexo em locais públicos e elevadores, com jardineiros, técnicos de TV ou marceneiros façam parte dos enredos, os produtores independentes manipulam as margens da linguagem meramente auditiva para fugir dos estereótipos misóginos, racistas e xenofóbicos franqueados pelo pornô tradicional. O estímulo é à imaginação do ouvinte, e, sumariamente, ao gozo. O prazer é negociado no timbre e no tom da voz ao pé do ouvido.
A Panty Nova, por exemplo, é uma loja paulistana de brinquedos eróticos especializada em produtos voltados às mulheres – as calcinhas strapon são o carro-chefe. Mas as criadoras Izabela Starling e Heloisa Fonseca sentiram a necessidade de humanizar a marca. A Panty Nova, então, criou um podcast homônimo. “Não queríamos que fosse apenas uma ‘lojinha’. Queríamos propor um debate. Falar sobre a sexualidade é uma missão”, afirma Raphaela Santana, 32 anos, que empresta a voz à narradora Beth. A produção, assim como os brinquedos eróticos vendidos, é direcionada, sobretudo, às mulheres. “Sentíamos a necessidade de colocar a mulher como protagonista. Torcemos para que as pessoas escutem o podcast e deixem de dar visibilidade para o pornô usual.” No entanto, ressalta Raphaela, o podcast também é voltado para a comunidade LGBTQIA+. “A gente só tem dificuldades com o público trans. Digo até por mim, que sou uma menina trans. Divulgamos um guia de vibradores para mulheres trans, mas muitas se sentiram engatilhadas por conta da disforia (transtorno que deriva da discordância entre a identidade de gênero e seu gênero anatômico). Nos preocupamos com a diversidade de gênero, mas também com os gatilhos do dia a dia.”
Assim como a Panty Nova, “Pelos lábios dela” reúne contos eróticos para mulheres, embora pessoas não binárias, homens e seres de outras dimensões também sejam bem-vindos. Mas o podcast tem outra premissa. Flertar com a linguagem literária. “A personagem quer ser lida como alguém que brinca com a literatura. Um podcast que traz elementos literários ou contos eróticos é muito diferente daquele podcast que traz uma excitação logo de cara, a qualquer custo. É uma diferença sutil, mas importante para nós”, explica Ana Lucía da Matta Adentro, pseudônimo da autora e narradora de “Pelos lábios dela”. A discrição é a essência do podcast. Não se conhece a imagem de Ana Lucía, tampouco a idade – “entre 35 e 40 anos”. Apenas que se trata de uma escritora, tradutora e revisora. “O erótico, a sensualidade, a sexualidade são abordados no ‘Pelos lábios dela’ por meio de uma relação com a natureza, com o ambiente. Todos os objetos e os espaços têm potencial excitante.”‘
‘Não é conto, é fato’
O massoterapeuta Juan Calabares, 29, a princípio, distribuía a produção de contos eróticos pelo YouTube. “Mas acabei tendo problemas com a plataforma, que não aceita conteúdos eróticos”, relembra. Então, Calabares aderiu à linguagem sonora em setembro de 2020 por meio do “Contos eróticos Juan Calabares”. O podcast é voltado para o público LGBTQIA+. “O foco é o público gay, chega a ser 98% dos ouvintes. Mas pretendo inserir mais conteúdos para bissexuais e transsexuais.” Tanto a narração quanto a produção do podcast são realizadas apenas por Calabares. Ele também escrevia os próprios contos inicialmente, “contos de fantasias”, como pontua, mas passou a ter a contribuição dos ouvintes. “Comecei a abrir para o pessoal, porque pediam que eu narrasse histórias que eles mesmos vivenciaram ou então escreveram. Recentemente, passei a relatar histórias verídicas que aconteceram comigo. Aí não são contos de fantasias, são verdade. O nome da seção, inclusive, é ‘Não é conto, é fato’.”
Já “Tela preta” não é um podcast. É um aplicativo, uma plataforma de streaming de áudios eróticos criada pelos sócios Fábio Chap, Samuel Aguiar, Laís Conter e Guilherme Nakata. “Criamos uma plataforma porque ficamos na dúvida sobre como monetizar o conteúdo junto a serviços e agregadores de podcasts. O ‘Tela preta’ funciona a partir de planos de assinaturas. O ouvinte tem acesso a mais de 200 áudios narrados por homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais etc”, explica Chap, 33, escritor e roteirista. Há áudios eróticos para todos os gostos, aliás. “Temos contos mais românticos, ambientados em dias frios e chuvosos, acompanhados de uma lareira. Mas há aqueles que envolvem bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo (BDSM). O lance das algemas, chicotes, tapas, xingamentos.” A maior parte dos áudios eróticos é voltada às mulheres. Não apenas às heterossexuais, mas também às mulheres LGBTQIA+, acrescenta Chap.
‘A projeção é conforme as fantasias de cada um’
Os podcasts e áudios eróticos têm uma particularidade fundamental no que concerne à linguagem e à relação entre os produtores e os ouvintes. Os detalhes não são dados, porque não há imagens. A indústria pornográfica, por exemplo, moldou-se a partir do estímulo visual. Não há negociações. As imagens estão dadas. Já os podcasts estimulam a audição. Por si só, a linguagem é mais intimista, ao pé do ouvido. O acordo é negociado no timbre, no tom da voz do narrador, em sussurros ou exaltações. A interpretação dá espaço aos vazios, aos preenchimentos, à cadência, à pausa, à aceleração. À imaginação. Ao gozo. O único termo sumariamente inegociável é a imaginação dos ouvintes. Os autores pouco descrevem personagens e ambientes.
“O pornô já entrega tudo muito pronto. O podcast estimula a imaginação”, afirma Raphaela Santana. O ouvinte se imagina na situação descrita no conto erótico, acrescenta. E a projeção é particular conforme as experiências e as fantasias de cada um. “Esse é o diferencial, é o legal. Quando falamos de um quarto, o próprio ouvinte imagina como são as paredes. Se a nossa descrição faz com que a pessoa se lembre de determinado quarto, ela automaticamente se insere na história.” A Panty Nova busca omitir descrições étnicas e físicas, como religião, raça e “fetiches pesadões”. “Não entramos em certas coisas. Quando ainda mantínhamos um diálogo bem aberto para que o público mandasse contos, chegavam coisas muito pesadas. Coisas de deep web do pornô mesmo. A gente não faz isso. Queremos algo saudável. Uma coisa que sempre encaixamos, por exemplo, é o humor. A nossa missão enquanto marca é quebrar o tabu da sexualidade através do humor.”
‘O erótico é alguém falando na sua orelha’
Ana Lucía aponta que o trunfo de podcasts eróticos é justamente o intimismo. “O erótico, então, é alguém que está falando na sua orelha. É muito íntimo, muito íntimo mesmo. Ao contrário dos recursos audiovisuais, as imagens não acontecem fora dos ouvintes, mas dentro.” A imaginação do ouvinte corre solta, complementa. Tanto a linguagem auditiva quanto a audiovisual têm potência para resultar em trabalhos extremamente sensoriais, eróticos, pondera Ana Lúcia. “Na imagem, necessariamente há a figura dos personagens, o que te encaminha até determinada experiência. Mas no ‘Pelos lábios dela’, por exemplo, não carregamos a mão nas descrições físicas. Às vezes, é a voz de um personagem, as mãos. Tentamos não fechar as imagens.” Conforme a anfitriã de ‘Pelos lábios dela’, as possibilidades do podcasts estão próximas daquela da literatura. “A potência é da imaginação, de criar os espaços.”
“A voz é muito íntima”, afirma Juan Calabares. “Se você está vendo um vídeo, pode silenciá-lo, ver apenas a imagem e você continua excitado. A voz, não.” O tom deve ser agradável, tranquilo. No fim das contas, a fala deve passar emoção. “Se eu pego um texto e o leio apenas por ler, não vai causar reação alguma. Certa vez, gravei um mesmo conto de duas maneiras e enviei para amigos. As reações foram diferentes. A questão é saber utilizar o tom e o timbre da voz, utilizar a entonação correta na hora certa. Passar a emoção mesmo.” De acordo com o anfitrião de “Contos eróticos Juan Calabares”, se ele está em um dia em que aparente não estar muito a fim, nem grava. “A pessoa vai perceber que estou desanimado.”
Fábio Chap relembra que, em determinadas transmissões ao vivo junto a psicólogas e sexólogas, questiona às profissionais de saúde sexual se os homens são, de fato, mais estimulados pelo visual, e as mulheres, pelo auditivo. “Sempre pergunto se é por motivos fisiológicos ou culturais. A maior parte responde que é por motivos culturais. O homem é culturalmente mais estimulado a partir da atração visual, e a mulher, também culturalmente, é estimulada a ouvir mais.” Há uma cultura opressiva de que, para homens, tem que ser assim, e para mulheres, assado, segundo Chap. Se os vídeos pornôs entregam 90% do que vai ser feito, os áudios eróticos fazem com que os ouvintes desenhem a cena na própria imaginação. “Para algumas pessoas – não necessariamente para todas -, os áudios podem estimular um orgasmo mais intenso. Alguns homens já nos disseram que até acham os áudios legais, mas não vão trocar os vídeos pornôs pelos áudios. Só que algumas mulheres já nos relataram ter tido o melhor orgasmo da vida escutando os áudios eróticos.”
Contraponto à indústria pornográfica
Os produtores de podcasts e os áudios eróticos escutados pela Tribuna convergem para uma premissa unânime. Todos se oferecem aos ouvintes como uma alternativa à indústria pornográfica mainstream. A premissa pode ser dada como óbvia, é verdade, já que a linguagem é diferente. Mas o caminho é justamente a contramão. Além de evitar o endosso de estereótipos misóginos, racistas e xenofóbicos discriminados pelas principais plataformas da indústria pornográfica, os produtores de podcasts e áudios eróticos buscam quebrar o monopólio das narrativas do erótico, do desejo, do gozo. Todos historicamente construídos por e para homens. “Queremos justamente tensionar, nos opor a esta narrativa e possibilitar que as mulheres tenham voz no que é sensual, erótico, desejável, prazeroso”, afirma Ana Lucía.
O modo como Ana Lucía se relaciona com o sexo ou com que a excita não serve para todas as mulheres, pontua a autora de ‘Pelos lábios dela’. “Nós temos as nossas diferenças. Mas é a voz de uma mulher contando o que a excita, o que é erótico. E a voz de uma atrai a voz de outras. A quantidade de mulheres contando as suas próprias fantasias e experiências é muito grande.” Ana espera que tudo no podcast lhe diferencie da indústria pornográfica. “Nós, mulheres, vivenciamos uma humilhação nas narrativas de filmes pornôs. Somos tratadas como objetos.”
Conforme ela, as mulheres foram não apenas privadas do prazer, como também do controle da narrativa do que é prazer. É uma premissa do ‘Pelos lábios dela’ se dissociar de estereótipos da indústria pornográfica, mas Ana Lucía pondera que, para isso, precisa da crítica dos ouvintes. “Estamos mergulhados nesta cultura. Por muitas vezes, podemos até achar que estamos nos desassociando, mas acabamos caindo em detalhes e cantos que não imaginávamos.”
Atentos às preferências dos ouvintes
Calabares aponta que os vídeos pornôs levam as pessoas a cair em uma mesma rotina, já que, com exceção ao cenário, a dinâmica é a mesma. Não só é a mesma narrativa, como também o mesmo tema e os mesmos atores. Mas o anfitrião de “Contos eróticos Juan Calabares” ressalta que a desassociação dos estereótipos é um jogo de teste. “Às vezes, a gente já imagina que algo vá ser mal visto. Temos que tomar cuidado com as palavras e com a maneira que as colocamos. Por exemplo, há muitas pessoas que gostam de sadomasoquismo, mas, por outro lado, não é muito bem visto. Narrei um conto antigo em que havia a questão do passivo-submisso. O pessoal não gostou. Eu busco evitar situações mais hardcore, estereótipos, o jeito dos personagens.” A linha editorial do podcast de Calabares é moldada conforme a avaliação dos ouvintes. “As críticas são sempre bem-vindas. Fantasio o máximo possível sem dar características.”
Raphaela detalha que a principal diferença entre o podcast da Panty Nova em relação às produções da indústria pornográfica é não impor corpo algum. “Em nenhum dos nossos contos damos características físicas. Quando descrevemos personagens, falamos em lindos cabelos curtos ou compridos. Em lindas mulheres altas ou baixas. Não falamos peso, raça, idade etc. Só falamos de mulheres lindas, maravilhosas e gostosas, ou de homens maravilhosos e gostosos. A beleza é subjetiva.” A preocupação com a cultura machista é algo que vem da Panty Nova desde a criação da loja de brinquedos eróticos. “Nada da nossa loja tem o formato fálico. A nossa missão enquanto marca é quebrar o tabu da sexualidade para o público feminino, e um desses tabus é a exploração do corpo ou a ilusão de que a mulher só pode ter prazer com um pênis. Estimulamos a mulher a ser empoderada, a não depender de alguém.”
Chap ressalta que a principal diferença entre os áudios eróticos do “Tela preta” e as produções da indústria pornográfica está no gênero dos consumidores. “Homens costumam se identificar muito ainda com o pornô visual. As mulheres, não. Antes, não havia alternativa para essas mulheres. O nosso objetivo é excitar e muito as mulheres que nos ouvem. Como um objetivo secundário, aí sim podemos dizer que é ser uma alternativa à indústria pornô.” Além disso, Chap pondera que a masturbação a partir do estímulo da pornografia audiovisual é mais mecânica. “Percebemos que, no áudio, dá para trabalhar mais a imaginação. Você pode desenhar a cena inteira na sua cabeça. A principal diferença entre os áudios eróticos e os vídeos é a intensidade do orgasmo.” Os áudios eróticos podem até não funcionar para muita gente já acostumada ao visual. “Mas, para outras pessoas, sobretudo mulheres, é uma revolução”, acredita Chap.