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‘Nosso tempo é o da substituição’, diz arquiteta Jurema Machado

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Como seu objeto de interesse, a política patrimonial brasileira é um casarão, agigantado e imponente, que exige constante atenção, cuidado e reparo. Ainda que fixada num terreno de muitas subjetividades, essa política ampara-se, primordialmente, na técnica, na precisão que exige o trato com o passado, para que ele se sustente no presente e alcance o futuro. Referência no debate patrimonial, a arquiteta e urbanista Jurema de Sousa Machado, presidente do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, entre 2012 e 2016, alerta para um cenário de incertezas na principal instituição do setor no país. “As mazelas pelas quais o Iphan pode passar são decorrentes da conjuntura econômica e política. Na conjuntura política, estamos vendo a substituição indiscriminada de cargos de chefias nos estados por indicações políticas. Essa é uma situação esdrúxula em se tratando do Iphan”, comenta Jurema, assumindo que, quando aumentaram as pressões pelo impeachment de Dilma Rousseff, houve substituições em superintendências, “mas em menor escala”.

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Convidada para a conferência que encerrou o I Congresso Internacional Gestão dos Patrimônios da Humanidade Urbanos, na UFJF, na última semana, Jurema apontou para o que se tornaria um dos principais assuntos dos últimos dias na política de Minas Gerais. Publicados no “Diário Oficial da União” na última quinta-feira (25), o atos que exoneravam a museóloga Célia Corsino e nomeava o cinegrafista Jeyson Dias Cabral da Silva para a superintendência do Iphan no estado levantaram, uma vez mais, a discussão acerca da gestão do órgão. “Não é uma instituição sobre a qual se viu críticas no sentido de corrupção ou troca de favores. E corrupção ali é fácil, não só com obras, mas, sobretudo, com licenças inadequadas. Esse tipo de situação não se vê ali. Há uma equipe muito qualificada. Se essa tendência de se substituir indiscriminadamente especialistas por cargos políticos continuar, vai dar um baque no instituto”, prenunciava Jurema, cinco dias antes da troca, em entrevista à Tribuna.

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Até então empregado na Câmara Municipal de Juiz de Fora, Jeyson atuou como assessor do então vereador Charlles Evangelista (PSL), hoje deputado federal, e não reúne experiência na área patrimonial, ao contrário de sua antecessora na superintendência, que ocupava o cargo desde 2015. Prefeitos de cidades históricas como Ouro Preto, Diamantina, Congonhas e Tiradentes manifestaram-se contrários à substituição. Especialistas temem um possível desmanche do órgão, que recentemente teve um de seus principais impasses, a falta de pessoal, resolvido com um concurso público. Segundo sua ex-presidente, isto resolve por um bom tempo o problema do instituto que, há dez anos, em 2009, viu sua política ganhar novos contornos com a criação de uma lei que estabeleceu o Instituto Brasileiro de Museus, o Ibram, separando tal gestão das diretrizes do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan.

“Era como se o Iphan ficasse com a agenda dura, e o Ibram ficasse com a comunicação do patrimônio. Operacionalmente acho que fazia sentido, e a política de museus deu um salto do ponto de vista conceitual”, avalia Jurema, à época coordenadora do setor de cultura da Unesco no Brasil e, três anos mais tarde, presidente do Iphan. Mineira de Divinópolis, Jurema iniciou sua trajetória profissional em Belo Horizonte, coordenou a elaboração do Plano Diretor de Ouro Preto na década de 1990, presidiu o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) e hoje, radicada em Brasília, atua como consultora independente. “Um dos principais focos com que tenho trabalhado é a relação entre desenvolvimento urbano e patrimônio. Sempre foi a coisa que me motivou mais. Nunca trabalhei na área de restauro, em projetos de restauração, conheço as teorias, os critérios, mas essa nunca foi minha atividade. Privilegiei a relação entre patrimônio e cidade porque acho que os maiores desafios estão concentrados aí. São soluções que a gente precisa achar conjuntamente. Aparentemente pode parecer um conflito, do patrimônio como uma trava, mas acho que é o contrário: o patrimônio está a favor de uma qualificação do ambiente urbano, de uma recuperação de áreas que ficaram à margem do desenvolvimento”, defende.

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Para Jurema Machado, políticas de preservação, como o tombamento, devem ser articuladas com outras políticas públicas, garantindo o patrimônio como valor na sociedade. (Foto: Felipe Couri)

‘O destino dos centros é dramático’

Hospedada num hotel na área central de Juiz de Fora, Jurema Machado observou o vaivém de carros e pessoas durante a semana na cidade. Retornando após 18 anos, assustou-se com o crescimento da UFJF e com a expansão da zona periférica. Nada de novo, portanto. E Juiz de Fora, com seu crescente esvaziamento do centro reflete o que se vê no globo. “Essa é uma história que se repete, de maneira geral, no Brasil e no mundo. Basta só mudar o nome da cidade. O restante é a mesma coisa, com graus de intensidade diferenciados. Quando o processo é mais antigo, vemos níveis altos de degradação e abandono, com ocupações em condições de risco, pessoas morando em péssimas condições ou imóveis totalmente vazios. Todas essas mazelas estão relacionadas com esse patrimônio, num sentido mais amplo, de um acúmulo de décadas. Temos hoje um patrimônio construído maior do que somos capazes de utilizar, por incrível que pareça. Alguns países resolvem isso de forma melhor, com mais agilidade, boas ideias e decisão política. Outros vão deixando ver até onde vai parar. Na verdade, se não interferir nesse processo, o destino dos centros urbanos é muito dramático”, constata a especialista, apontando para uma solução capaz de conjugar diferentes coordenadas. Nenhuma política, seja de mobilidade urbana, seja de uso do solo, deve ser trabalhada isoladamente.

Outra questão inescapável, segundo Jurema, é voltar as moradias para as áreas centrais, que geralmente são coincidentes com as regiões históricas. “Temos problemas de moradia para todo lado, e essas áreas esvaziadas, justamente elas, que são as mais bem localizadas, mais dotadas de infraestrutura e pelas quais a sociedade, como um todo, pagou. Abandonar isso é totalmente irracional. Lugar onde não se mora não presta. É insalubre, inseguro e tem vitalidade só em parte do tempo. Os arranjos são difíceis e lentos, mas não podem ser abandonados”, pontua a arquiteta e urbanista, defendendo que o país tem conseguido manter razoavelmente seus monumentos. “Na arquitetura civil, no que é privado, é que está nosso problema. Como resolvemos? Envolvendo um conjunto de atores. Um governo, em nenhum lugar do mundo, pode prover melhorias e intervenções em patrimônio edificado de propriedade particular, a não ser que ele vá ter função pública”, explica.

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“Lugar onde não se mora não presta. É insalubre, inseguro e tem vitalidade só em parte do tempo” – Jurema Machado

“Nas últimas décadas, especialmente a partir de 2003, quando começa a melhorar visivelmente a situação econômica, investiu-se muito, mais do que em toda a história. Na minha época, de 2012 a 2016, em que a crise econômica já vinha se assinalando, tivemos um programa grande, o PAC Cidades Históricas, com muito recurso. Esse programa continuou no Governo Temer e continua agora, ainda que com menos obras do que as que se previam. Tem cidades que olhamos o conjunto de igrejas tombadas, e todas estão muito bem. As igrejas de Salvador hoje estão melhores do que sempre estiveram. A maior parte delas está restaurada. Congonhas, aqui perto, está muito bem”, pontua a especialista, para logo ser questionada sobre o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. “A situação é dramática, uma tristeza imensa e uma perda incalculável, mas ali se juntam muitos fatores: a edificação tinha uso museológico, uso de pesquisa, uso administrativo. Há um excesso de usos ali dentro, com foco muito grande na dinâmica e, talvez, menos atenção para o edifício em si”, analisa, comparando o museu à Biblioteca Nacional, cujo acervo e o próprio prédio se equiparam em importância e também se encontram em estado de grande deterioração.

Ouro Preto é uma das cidades históricas de Minas Gerais beneficiadas com o programa federal PAC Cidades Históricas. (Foto: Sérgio Mourão/Setes/Divulgação)

‘O ambiente urbano implica limitações’

O tombamento, reconhece Jurema Machado, é uma limitação do direito à propriedade, gesto que não representa excepcionalidade diante de uma sociedade formada por regras. “De forma semelhante, a legislação urbanística e ambiental incide sobre o seu imóvel. ‘Eu faço o que quero aqui!’. Não! Não faz! Se tiver uma grande propriedade rural, tem limites do quanto pode desmatar, limites do quanto pode chegar perto de um córrego. Mesmo estando numa cidade que não tenha tombamento nenhum, a legislação pode te dizer qual a sua distância em relação à divisa, quantos pavimentos poderá ter, se será obrigado a colocar garagem ou não. Conviver num ambiente urbano implica em limitações que interessam a ninguém individualmente e a todos ao mesmo tempo. O tombamento é mais uma dessas limitações e, em alguns casos, pode ser mais drástica. Várias cidades vêm testando as chamadas transferências do potencial de construir, que é como se fosse um título público que a Prefeitura controla e que você pode vender no mercado”, analisa a especialista, chamando atenção para um mecanismo já previsto na legislação juiz-forana, ainda que não tenha sido colocado em prática mais de um ano depois de ter sido decretado.

“Conviver num ambiente urbano implica em limitações que interessam a ninguém individualmente e a todos ao mesmo tempo” – Jurema Machado

Para Jurema, o tombamento deve estar conectado a outras políticas públicas e as edificações protegidas precisam integrar um contexto de valorização, de ambiência da cidade. Deve existir coerência e coesão, como num texto. “O proprietário pode ter outro tipo de ganho”, aponta, citando o Corredor Cultural do Rio de Janeiro, de Darcy Ribeiro como secretário de cultura de Leonel Brizola, projeto pioneiro de preservação e revitalização para os bairros centrais, como a Lapa, a Cinelândia e os largos da Carioca e de São Francisco na capital fluminense. “Há que se pensar em compensações, em projetos que sejam de melhorias de conjuntos e não apenas de uma edificação isoladamente”, adverte a arquiteta e urbanista que estava na Unesco quando o Rio de Janeiro tornou-se patrimônio mundial da Humanidade. Jurema também participou, na gestão do Iphan, da candidatura da Pampulha, em Belo Horizonte, e do Cais do Valongo, na capital fluminense como patrimônios mundiais. E propôs a segunda candidatura de Paraty como paisagem cultural, rejeitada como a primeira. “Foi uma ‘bateção’ de cabeça”, lembra. “Os dossiês são formas de convencimento de que aquele bem merece estar numa lista mundial”, explica, apontando que apenas 39 dos 1121 bens mundiais são mistos como a cidade histórica cravada num sítio natural e mais recente patrimônio mundial da humanidade no país.

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Brasília, onde vive Jurema, é um exemplo de preservação modernista no país que ainda resiste a reconhecer a relevância da preservação dessa arquitetura. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Divulgação)

‘As pessoas precisam de referências’

Vivendo em Brasília e tendo sido um dos principais sujeitos na declaração da Pampulha como patrimônio mundial, Jurema Machado reconhece o valor artístico e histórico da arquitetura modernista, ao mesmo tempo em que identifica a ausência desse mesmo reconhecimento no restante da população. Por isso, lamenta a transformação de paisagens como a do Bairro Bom Pastor, que pouco a pouco vê seus casarões darem lugar a prédios. Uma vez mais, pontua Jurema, não se trata de fenômeno exclusivo de Juiz de Fora. “Em se tratando do movimento moderno que está presente nas cidades, de forma dispersa, sem essa notoriedade e excepcionalidade, e por se tratar de uma arquitetura mais recente, as pessoas não entendem ser merecedora de condição de memória. Nosso tempo é o tempo da substituição. As cidades parecem que foram feitas para serem desmanchadas e substituídas. Realmente é uma luta fazer a defesa desse patrimônio moderno”, afirma a arquiteta e urbanista. Segundo ela, mais do que um impacto na paisagem, essas mudanças impactam o imaginário, já que essas edificações geralmente estão associadas a boa qualidade de vida, com pilotis, áreas arejadas, edificações soltas num terreno. “Qual a vantagem da troca?”, questiona Jurema.

“Pampulha e Brasília são situações atípicas do ponto de vista de garantia da preservação. Pampulha é um marco mundial e qualquer compêndio de arquitetura que estude o movimento moderno no mundo retrata a área. Foi uma guinada do ponto de vista plástico, com as curvas do (Oscar) Niemeyer e o uso do concreto completamente inusitado, juntando com as artes aplicadas, paisagismo e mais escultura. Foi um dossiê fácil de tramitar na Unesco. Brasília também tem essa coisa da monumentalidade, não só apenas dos edifícios, mas da ousadia do projeto. Os brasilienses reclamam da preservação, porque têm uma imagem nostálgica do tempo em que se mudaram para lá. A cidade é densa, durante o dia é muito cheia, mas não ultrapassou nenhuma das densidades. Ela cresceu muito no entorno, mas o plano piloto se manteve, em alguns casos até com densidade muito baixa. Quem vem de fora se impressiona muito com o grau de preservação, como a cidade manteve de forma tão ortodoxa todos os princípios do Lúcio Costa”, aponta Jurema, com encantamento, sobre a cidade onde vive há quase duas décadas.

Patrimônio Mundial da Unesco, a Pampulha teve participação de Jurema Machado em sua candidatura. “Foi um dossiê fácil de tramitar na Unesco”, conta ela. (Foto: Carlos Alberto Pereira/Imprensa MG/Divulgação)

Se não para despertar o encantamento, as questões patrimoniais, indica a especialista, servem para suscitar o incômodo e apontar direção. “Ele está presente para nos fazer refletir sobre o que queremos”, diz. “As cidades que a gente tem prazer são as que têm referências. Essa permanente mudança, a perda de vínculos, causa instabilidade”, defende, entre o pessimismo e o otimismo com os dias que correm. “Se olharmos para trás, as políticas de patrimônio se firmaram, geralmente, em momentos de ruptura. Após a Revolução Francesa começou uma grande discussão se os monumentos da monarquia deveriam ser destruídos, porque na verdade eram uma construção coletiva de toda aquela sociedade, eram a história do povo francês, e, assim, começa um movimento de preservação. Nossa política de patrimônio começa junto com a industrialização. Não sei se isso era tão claro na cabeça do Getúlio Vargas, mas no momento em que as cidades começam a crescer, inicia o debate. Por um lado, há uma política de urbanização e industrialização e, por outro, uma política de patrimônio. Ao mesmo tempo que o patrimônio é ameaçado, é muito necessário, porque as pessoas precisam de referências. Hoje está todo mundo muito deslocado de projeto de futuro, a internet proporciona um contato distante, tudo está presente e, ao mesmo tempo, ausente.”

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“Hoje está todo mundo muito deslocado de projeto de futuro, a internet proporciona um contato distante, tudo está presente e, ao mesmo tempo, ausente” – Jurema Machado

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