Os dias correm e escorrem. A cozinha, contudo, é convite insubordinado com o relógio. Lugar de estancar correria. Conjugando o verbo alimentar tal qual contemplar, “Quem temperô?” retrata a instância onde é preciso respeitar o tempo de cozimento, o tempo de preparo, o tempo do forno, o tempo de espera, o tempo de cada garfada. O novo espetáculo da equipe sênior de Contadores de Histórias do Instituto Metodista Granbery, que estreia neste sábado (30), às 20h, no Auditório Elaine Lima da instituição, utiliza-se de narrativas orais, canções e textos (entre poemas, crônicas e contos) da literatura nacional e mundial para falar de sabores subjetivos e objetivos. “Não vamos falar só sobre a comida que alimenta o corpo, mas da comida da alma”, confirma a diretora Laura Delgado.
Para o moçambicano Mia Couto, “cozinhar não é serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros”, afirmativa que perpassa o repertório que contempla do poeta mato-grossense Manoel de Barros ao filósofo polonês Zygmunt Bauman. “Minha mãe cozinhava exatamente/ arroz, feijão-roxinho,/ molho de batatinhas.// Mas cantava”, escreve em “Solar” a poeta mineira Adélia Prado, a mesma que em “A menina e a fruta” diz: “Não há como escapar à fome de alegria!”.
“Adélia, Drummond, Manoel de Barros, Bartolomeu Campos de Queirós não saem de nossos repertórios. O contato com esses autores é muito importante para todo o grupo. Os integrantes são muito envolvidos com a literatura”, comenta Laura, que para a concepção da montagem partiu das emoções e experiências particulares, considerando pratos e textos favoritos do grupo que reúne de ex-alunos a professores universitários.
Das cerca de 60 histórias, o espetáculo preservou sete em sua versão final, que contempla, ainda, receitas apresentadas artisticamente e músicas do cancioneiro popular brasileiro executadas ao vivo. “Trabalhamos muito com histórias da tradição oral, que é um mote importante para a contação de histórias. São narrativas passadas de boca em boca, forjadas numa época que não sabemos qual, mas que fizeram e fazem muito sentido, porque foram feitas de uma substância fundamental para as tantas perguntas que fazemos na vida. Quem somos nós no mundo?”, pontua a diretora.
Segundo Laura, algumas histórias respondem reflexões profundas. “Outras, por sua vez, nos ajudam a entrar em contato com essas perguntas essenciais. A mesa faz isso também. É um contato com as reminiscências, com o que há de mais genuíno, é o encontro com a palavra, consigo mesmo e com o outro”, defende a contadora de histórias, dizendo da montagem cuja entrada é franca e, ao término, apresenta uma saborosa mesa com os quitutes de Mércia Coelho, da Associação de Funcionários do Instituto Metodista Granbery.
Degustar conhecimento
“Em português, as palavras sabor e saber têm a mesma origem: o verbo sapio. Sapere, em latim, podia significar “ter gosto”, “sentir”, “compreender”, “saber”. Assim como as comidas, o conhecimento precisa ser degustado, provado, experimentado”, reflete Ulisses Belleigoli, que integra o espetáculo com sua contação e seu texto de abertura de “Quem temperô?”. “Que nesses tempos de ódio e fundamentalismo, nós multipliquemos as receitas e nos deleitemos com os diferentes sabores e saberes. Que nesses tempos de desejos insossos, nós possamos temperar a vida com alegria, alecrim e histórias”, acrescenta o escritor, professor e contador de histórias.
Tomando as discussões de Bauman e seus “tempos líquidos”, Laura Delgado destaca a importância de transpor para o cotidiano o prazer que mora nas cozinhas, onde tantas histórias brotam: “No tempo da pressa, em que a gente está sempre devendo ao tempo, o tempo da comida é sempre cíclico, feito a todo momento, para que possamos pensar, saborear, contemplar. No espetáculo, a gente faz uma analogia com o nosso tempo na vida. Quanto tempo temos para saborear o que nos é dado a cada dia? Já que estamos sempre tendo que fazer tanta coisa, é preciso aprender com o tempo da comida, de sentar e esquecer, misturando almoço e jantar numa mesma mesa.”