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Um trago em cenas de filme já valeu milhões

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A imagem do personagem de Humprey Bogart em “Casablanca”, Rick Blaine, é indissociável do cigarro, e o próprio ator também passou a sê-lo, mesmo após a morte por câncer no esôfago (Foto: Reprodução)
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Arthur Gomes pediu para se apresentar na matéria como sócio diretor da Sagres Criativa, e, também, como entusiasta da história do cigarro. Ele começou a fumar com sua mãe. “Hoje a gente mora separado e, ainda assim, quando ela me liga, cria-se um ritual. A gente começa a conversar e ela dá uma parada para acender o cigarro. E eu também.” Isso explica seu fascínio pela trajetória, que ele chama de heroica, do cigarro: um dos únicos produtos que ainda existem sem publicidade. Em sua pesquisa, intitulada “A heroica jornada do cigarro: um estudo sobre o discurso publicitário de um produto que virou símbolo”, de 2015, ele busca entender como a indústria ainda sobrevive, mesmo com as sanções impostas para o combate ao fumo. A conclusão é clara: “Ao longo da história, principalmente o cinema e a publicidade foram responsáveis por criar heróis fumantes. Isso fez com que a indústria construísse uma narrativa, uma característica simbólica suficiente para, mesmo sem propaganda, sobreviver no imaginário das pessoas”.

Ele mesmo, por fim, assume que começou a fumar por influência do Slash, guitarrista da banda Guns N’ Roses. “Além dessa relação com minha mãe, fumar, para mim, tinha uma pegada de liberdade, de querer ser como meu ídolo. Eu tinha uma banda e era guitarrista, como ele. O cigarro veio nisso.” Arthur não foi o único. No ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou uma nota declarando que “quase nove em cada dez fumantes começam a usar o cigarro antes dos 18 anos”. Mas essa trajetória que o cinema e a publicidade construíram foram tão eficazes que, até hoje, cenas e personagens épicos vêm à mente quando o assunto é cigarro, mesmo com propagandas proibidas desde 2000 no Brasil. Os cowboys da Marlboro, que começam a circular a partir de 1955, por exemplo, até hoje são assunto – principalmente porque muitos morreram em decorrência do cigarro. E utilizá-los foi uma maneira eficaz de dissociar a marca da preferência feminina e criar uma narrativa de poder e liberdade no campo, vinda dos homens. Essa propaganda é considerada uma das mais geniais de todos os tempos.

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No cinema, “Casablanca”, de 1942, para citar um exemplo, é indissociável do cigarro. Não só para a composição de cenas, criando um ambiente esfumaçado, principalmente nos bares típicos da época, em que todos fumavam. Mas, também, transformam o cigarro em – praticamente – um personagem. Quando cenas de sexo eram “proibidas” no cinema, era o cigarro que sugeria essa intimidade. Por isso a ligação entre esses dois atos. Em sua presença, tudo muda e, além disso, sugere algo.

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Nilson Alvarenga, professor de Rádio, TV e Internet (RTVI) na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pontua que, por causa das próprias características do meio, os personagens são muito visuais, e o cigarro acaba sendo inserido na estruturação do cinema. É como se ele, por si só, fosse capaz de dar uma cara nova ao elenco. “No começo, no cinema, tem uma presença de gente fumando como se isso fosse um signo de charme, status, personalidade.” Nessa época, inclusive, era indispensável que os atores possuíssem fotos com o cigarro. As empresas pagavam muito dinheiro para que eles, os heróis, com trajetórias comoventes, dessem uma simples tragada na frente das câmeras. E isso gerou resultado.

‘O cigarro virou um símbolo’

Don Draper, personagem de Jon Hamm na série “Mad Men”: fumante inveterado e publicitário de Lucky Strike (Foto: Reprodução)

A primeira cena da série “Mad Men”, de 2007, focada no publicitário Don Draper e na agência Sterling Cooper, por si só resume a relação entre cigarro, propaganda e cinema. Don está em um bar e pergunta ao garçom por qual motivo ele fuma a marca Old Gold e não a Lucky Strike – da qual ele é responsável pela publicidade. O garçom responde que é porque “eles nos davam isso no Exército. Um pacote grátis por semana”. Don cria uma alegoria para entender se, em alguma hipótese, ele fumaria outro cigarro. Por fim, declara que sim, porque “gosta de fumar”. Mas, ao mesmo tempo, assume que quem não gosta é sua mulher, que lê revista. Nessa época, década de 1960, começavam a sair os primeiros artigos mostrando que fumar mata. O publicitário olha ao redor: todos estão fumando. Em um bar – local fechado, impensável hoje em dia.

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Isso mostra duas coisas: a primeira é que as guerras foram fundamentais para a popularização do cigarro, que faziam parte do kit de sobrevivência dos soldados, patrocinados pelas marcas; a segunda é que, mesmo mostrando que o cigarro mata, as pessoas continuaram consumindo. Mas, para isso, a publicidade teve que mudar seu estilo. Mais que antes, eles passaram a impulsionar uma forma de viver, “cool” mesmo, garantindo que aquilo seria atingido se uma tragada fosse dada – parecido com o que as marcas de cerveja fazem hoje. Além disso, os esportes também entraram nessa. Exemplo disso é Ayrton Senna, herói nacional da Fórmula-1, sempre com a marca Marlboro ao lado em suas fotos na época em que pilotava a McLaren, patrocinada pela marca de cigarros. A Hollywood também focava suas campanhas em esportes radicais. O maço aparecia nas cenas de surfe, escalada, entre outros. Outro personagem foi Gérson, jogador de futebol conhecido como Canhotinha de Ouro. Depois de ganhar a Copa do Mundo com a Seleção Brasileira, ele fez uma campanha para a marca Vila Rica, em que ele sugeria o cigarro maior, pelo preço de sempre, como forma de levar vantagem. No cartaz, dizia: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”. Ali nascia a “Lei de Gerson”.

Esses são os heróis aos quais Arthur se refere. Utilizá-los nas campanhas publicitárias das marcas de cigarro era uma forma de associar fama e poder ao tabagismo. “Conectando a heróis mesmo, as atitudes de um simples produto foram sendo perdidas. O cigarro virou um símbolo. Ao longo dos anos, vários valores foram sendo associados: poder, sensualidade, charme e intelectualidade. Até hoje é difícil dissociá-los”, acredita Arthur.

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Saindo de cena?

Diante das evidências científicas dos malefícios do cigarro, começaram as sanções ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, já em 1971 as propagandas na TV foram proibidas. No Brasil, em 1988, as embalagens tiveram que mudar para inserir o aviso: “O Ministério da Saúde adverte: fumar é prejudicial à saúde”. Dois anos depois, a mesma frase deveria ser inserida nas peças publicitárias que ainda podiam ser veiculadas no país. Em 1996, os comerciais passaram a ter segmentação de horário, das 21h às 6h, e ficou proibido fumar em locais fechados. Em 2000, por fim, a propaganda foi proibida, assim como associar fumo a práticas esportivas.

Nesse tempo de sanções ao redor do mundo, entre os anos 1990 até mais recentemente, o professor Nilson percebe que o cinema, principalmente, fez com que o cigarro desaparecesse das cenas, tendo que construir novas formas para atribuir charme, poder e sensualidade aos personagens. Ou, então, essas características foram invertidas: nesse momento, quem fuma são pessoas associadas a crimes, subversão, alegando que o ato, realmente, não é “cool”, muito pelo contrário.

Joyce Byers, personagem de Winona Ryder na série “Stranger things”: coisas estranhas e um cigarro atrás do outro (Foto: Reprodução)

Agora, no entanto, percebe-se que o cigarro vem tomando, mais uma vez, as telas. Arthur, por exemplo, lembra da série da Globoplay, “Ilha de Ferro”, exibida, agora, também, na TV. A atriz Maria Casadevall interpreta Júlia, que assume a plataforma de petróleo da família. Ela é uma mulher poderosa e, para assumir os estereótipos, fuma – e muito. Em 2018, a Netflix foi alvo de críticas por causa disso. Um estudo feito pela organização antitabagista Truth Initiative detectou 319 cenas com cigarro na Netflix em 14 séries com temporadas entre 2015 e 2016. A com mais cenas é “Stranger Things”. Essa construção de composição de cena, como um detalhe, foi tão bem definida que, muitas vezes, pode passar despercebida, porque foi naturalizada. Arthur fala que isso, inclusive, é um método da publicidade, chamado de “product placement”, em que marcas são introduzidas em cenas do entretenimento de maneira natural, não brusca. Sem perceber, o telespectador está sendo influenciado. Mas ele também percebe uma mudança no tipo de personagem associado ao vício: “Agora, quem fuma não é o herói, mas, sim, o anti-herói que, de certa forma, também influencia nas construções de personagens.”

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Em queda

As pesquisas mostram que houve, sim, uma diminuição no consumo de cigarro com as sanções. De acordo com a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição, em 1989, 34, 8% da população brasileira acima de 18 anos fumava. Já em 2019, com base na Pesquisa Nacional de Saúde, o número era 12, 6%. Mesmo assim, as campanhas contra o fumo continuam. O dia 29 de agosto foi pensado para reforçar essas ações, com o Dia Nacional de Combate ao Fumo. Estima-se que o Brasil tenha prejuízo anual de R$ 56,9 bilhões com o tabagismo. É por isso que, constantemente, novas leis são sancionadas para que o número continue diminuindo. O medo, agora, é que, com o lucro das empresas de tabaco caindo diante da queda no consumo, juntamente com brechas nas fiscalizações, o cigarro volte a compor, de maneira mais assídua, as telas, e uma tragada volte a valer milhões.

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