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Marcos Marinho revira baú de memórias durante período em isolamento

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Arrumar a casa, limpar todos os cantos, resgatar o que estava escondido no fundo de uma gaveta, tirar a poeira do que parecia não mais funcionar, descartar o que não faz mais sentido, consertar o que estava quebrado. Enquanto muitos utilizam os dias de isolamento social para olhar ao redor, para a casa, Marcos Marinhos voltou-se ainda mais para dentro. Num caderno que já passa de 130 páginas de anotações, observações e redações, fora os muitos arquivos digitais, ele reviveu as próprias memórias de infância, que agora ganham as redes como aperitivos de um projeto que aguarda o tempo de reencontro para tornar-se concreto.

Desde 15 de março, quando iniciou a quarentena, o ator e diretor começou a dedicar-se com disciplina à nova peça, “Infância”. Fabrica pequenas caixas – as caixas de memória – onde se passam algumas ações, os objetos que manipula, lê o texto em voz alta, ensaia, grava (a irmã Vânia, na verdade) algumas cenas e publica em suas redes sociais. A artista visual Fernanda Cruzick faz as artes gráficas, o DJ Tuta elabora a pesquisa musical e o maestro André Pires compõe, em parceria com Marcos Marinho, a música-tema. O período de isolamento serve como ensaio. Também como investigação de alternativas de fomento. E como fôlego.

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Marcos Marinho em cenário adaptado na casa da irmã, onde passa seus dias de quarentena, com objetos que já produziu para o novo projeto. (Reprodução)

Os cortes e recortes da memória
Um livro com textos da nova peça, sem as indicações próprias do texto teatral, mais ilustrações feitas ao longo do processo de criação, integra o novo projeto de Marcos Marinho, que prevê, ainda, algumas folhas em branco na publicação, para que os espectadores-leitores anotem as próprias memórias. “As pessoas deveriam pensar um pouco: por que não repensar o que já foi vivido até agora? Isso não é uma coisa só para os velhos. Imagino que isso possa ser bom para todos. Me dá uma sensação de liberdade”, sugere o ator.

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Matéria-prima do novo trabalho, as lembranças precisaram ser revistas e organizadas à medida que iam surgindo. Trabalho íntimo, mas também exercício compartilhado em família. “É uma tempestade. É que nem sonho. Não tem ordem cronológica, as pessoas, as cores, as datas se misturam. Para escrever as cenas, tenho que parar, pensar no que aconteceu, separar o que misturo, num trabalho de dramaturgia, selecionando o que desejo ou não levar para a cena. A primeira sensação é de tumulto.”

“As pessoas deveriam pensar um pouco: por que não repensar o que já foi vivido até agora? Isso não é uma coisa só para os velhos. Imagino que isso possa ser bom para todos. Me dá uma sensação de liberdade”, Marcos Marinho

Tal qual um camaleão, a memória se transforma. O ponteiro do relógio define suas novas cores, Marcos Marinho reconhece. “O limite entre o real e o imaginado é muito tênue. E fico na desobrigação de ser real. Tudo o que vai para a cena não precisa ser exatamente o que foi”, observa. As verdades, no entanto, estão ali, como o vestido da avó, a tarefa de limpar tomates com o pai. “O real está ali. Mas a maneira como levo para a cena tem que virar arte, poesia, artifício. Senão, interessa só a mim. Tem que interessar as pessoas.”

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E interessa, como a cena que abre o espetáculo, sobre a primeira vez que o menino de 6 anos adentra um teatro e, com a plateia já cheia, senta-se exatamente no lugar onde os diretores costumam ficar, com visão do palco, dos técnicos e dos espectadores. A imagem que cria desperta em quem vê uma pergunta: quando foi minha primeira vez num teatro? Marinho fala de si e fala do outro. Eis o ator, sujeito que num delicado texto é integralmente definido na peça: “Ele ainda não sabe. Claro! Ele ainda não sabe! Mas muito mais tarde alguém vai dizer pra ele que é ator quem não consegue viver no próprio corpo, no sexo imposto, no tempo imposto, no lugar imposto.”

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Contar-se e retratar o mundo
Em fevereiro de 2019, Marcos Marinho começou a conversar sobre a possibilidade de montar uma peça em que pudesse falar de si. “Levando em conta que o envelhecimento é uma espécie de infância às avessas”, ilustra. Seu primeiro interlocutor foi o amigo, ator e diretor José Eduardo Arcuri. Seu primeiro norte foi o texto de um autor mexicano que contava a própria vida, da infância à fase adulta. Meses depois, ouviu os versos de “Vecino”, do músico argentino Kevin Johansen: “Yo soy aquel que no soy yo”. Bingo! “O ator é isso, é aquele que é ele e ao mesmo tempo não é ele”, reflete.

Em dezembro, quando hospedou o contador de histórias François Moïse Bamba, de Burkina Faso (África), ouviu sobre a responsabilidades dos artistas que se deparam com uma criação biográfica. Era missão. Na sequência, dirigiu uma companhia de Ipatinga num trabalho documental, o que o aproximou ainda mais da linguagem que já perseguia. Em fevereiro, encontrou-se com o ator e diretor Ricardo Martins e com o escritor e contador de histórias Ulisses Belleigoli, que confirmaram a força do material que Marinho já reunia.

“Este projeto tomou força durante a quarentena porque antes estava no pensamento, apenas. As anotações das memórias da minha infância tomaram forma e viraram texto poético e narrativa depois da quarentena. Estou dentro de casa, só com minhas irmãs e minha mãe, não estou saindo. Minha mãe lembra de muita coisa, canta músicas, eu pergunto o que aconteceu na época. Lembramos, por exemplo, que eu e minhas irmãs fazíamos papagaios para vender. Vamos vasculhar caixas de fotografia”, conta ele, sobre um momento propício ao retorno para a casa, para o íntimo.

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“O ator é aquele que é ele e ao mesmo tempo não é ele”, Marcos Marinho

O trabalho se passa entre os anos 1962 a 1968, um trecho do período escolar de Marinho. Em cena, porém, não estão todas as recordações. O fio condutor é o encontro com a arte. “Estou escolhendo os acontecimentos que acho que tenham a ver com o meu ser artista depois”, diz ele, cuja infância foi vivida justamente no período que margeia o golpe militar de 1964. “Outra coisa que o Moïse Bamba me ensinou foi que, quando a gente conta histórias a respeito de nós mesmos, precisamos levar em conta o nosso sobrenome, ou seja, precisamos abrir o leque, considerando os antepassados, pessoas presentes, vizinhança, bairro, cidade, país e mundo”, explica o ator.

Nas memórias que são suas – e um tanto de quem o assiste -, estão a mudança para a granja, o cinema do bairro fechado, o programa de auditório proibido, o carnaval no centro da cidade com mais policiais do que fantasiados. Acontecimentos sociais e políticos, portanto, não são protagonistas, mas elementos cenográficos ou até mesmo interlocutores.

Marinho espera apresentar novo projeto em espaços abertos, como quintais, pátios de escolas rurais, sítios e fazendas. (Reprodução)

Um quintal para palco e plateia
Ainda que a pandemia tenha propiciado um retorno à casa, às raízes, ao íntimo, Marcos Marinho reconhece não ser tempo de pensar nos três sinais que antecedem uma apresentação. O teatro ainda deve permanecer em silêncio, enquanto seus sujeitos investigam alternativas em outras mídias, respeitando o isolamento social. A confiança do público será retomada? “Vai demorar e precisa demorar. Não vejo essa perspectiva, e não faço teatro para isso. Mais para adiante, quero fazer essa peça em lugar aberto, numa casa com um quintal muito grande, no pátio de uma escola da Zona Rural, num sítio, numa fazenda, num pesque-e-pague, até porque minha temática é muito rural”, sugere ele, certo de que o futuro para sua arte será de pequenas plateias. “Sempre fiz teatro intimista. Nunca fiz pensando que é para um público imenso. E já sinto, há muito tempo, que existe essa tendência no teatro. As melhores peças que assisti nas últimas décadas, tanto em cidades pequenas quanto nos festivais e nas capitais, foram as intimistas.”

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