A frase que mais ouvi essa semana foi: “Quem conta um conto inventa um ponto”. Fato é que, por mais parecido que fosse o relato dos entrevistados, cada um contava uma história de um jeito, e a coisa toda ia ficando diferente. O barato das lendas urbanas é que é difícil saber como e onde elas começaram a circular, mas a grande maioria tem sua fundamentação em um fato histórico ou em uma observação. Outras, claro, são simplesmente frutos da criatividade. “Se você parar no Calçadão e olhar para cima, todo mundo olha junto. Você até pode sair, que um burburinho vai se formar ali”, brinca José Luiz Ribeiro, fundador do Grupo Divulgação, justificando o aparecimento dessas lendas juiz-foranas.
Mas, se você olhar bem mesmo para aqueles cavalinhos do Edifício Juiz de Fora, feitos por Cândido Portinari, começa até a identificar coisas estranhas: um deles, por exemplo, não tem um ponto que todos os outros têm. O motivo disso é difícil de saber, mas é o suficiente para dar margem à imaginação. Juiz de Fora faz, na próxima terça-feira (31), 172 anos. São tantas histórias, sejam elas oficiais ou não, que circulam pela boca dos mais de 500 mil habitantes (sem contar os inúmeros que transitam por aqui) que é necessário um livro para dar conta de tudo. Mas, como diz o historiador Roberto Dilly: “certamente as lendas urbanas são as mais interessantes, porque são mais romantizadas”. Nos atemos, então, a elas.
Por que Juiz de Fora?
A começar pelo próprio nome: Juiz de Fora. Qualquer um apresenta uma resposta muito sucinta como explicação para o nome. E, geralmente, é: “o nome faz referência a um juiz de fora que atuava aqui”. É, realmente, romântica essa ideia, e Dilly diz que na maioria das vezes em que ele a desmente, muitos acham ruim – já que uma característica da lenda é simplesmente acreditar no que se ouve, sem se atentar à veracidade ou origem. Ela só segue e cresce. Mas o historiador explica: “O juiz de fora era um cargo que o cara tinha a seu critério julgar determinados casos que só cabia a ele. O governo da colônia tinha vários juízes de fora. No Rio de Janeiro tinha um juiz de fora que se chamava Luiz Carlos Fortes Bustamante Sá. Esse cara mudou para Juiz de Fora. Aqui ele construiu sua fazenda, que ficava mais ou menos onde é o Sayonara hoje. Essa fazenda recebe o nome de Fazenda do Juiz de Fora. O lugar começa a ser reconhecido como Sítio do Juiz de Fora. Quando é elevado a vila recebe o nome de Vila de Santo Antônio do Paraibuna. Depois, cidade do Paraibuna. Em 1865 o Barão de São Marcelino, que é um deputado estadual, resolve voltar ao nome original e passa a mudar o nome para cidade de Juiz de Fora. Então não tem nada a ver com o juiz que vinha de fora. É uma coisa muito doida”.
Cadê o canivete do avô do prefeito?
Nas coisas mais simples surge uma lenda. É que o novo assusta e é mais interessante inventar para explicar a surpresa. E foi com uma história que justificaram as obras para a construção do Calçadão. “Quando em 1975 o prefeito Saulo Pinto Moreira construiu o calçadão, ele tinha que fazer vários buracos na cidade. Tinha que cavar, fazer tubulação, captação de água pluvial, coisa de energia elétrica, cabeamento subterrâneo: tudo isso redundou em obrigatoriedade de cavar, abrir grandes extensões de buracos na Rua Halfeld. Algum ‘gaiato’ falou: ‘o avô do prefeito perdeu um canivete de estimação e ele está furando procurando o canivete’. E isso ficou tão fantasticamente conhecido que, na inauguração, o prefeito mandou fazer vários canivetes de brinde, com a logomarca da prefeitura, inaugurando o calçadão”, conta Dilly.
Na lenda, verdade
Ou seja: a realidade acaba sendo mesclada com as invenções e, assim, cria-se uma nova história. Antônio Carlos Lemos Ferreira é pesquisador e historiador e tem um interesse específico pela história do Morro da Boiada, que hoje corresponde ao Bairro Santo Antônio, onde Juiz de Fora começou. De acordo com ele, “vira lenda, porque o próprio delas é ser verdade”. “As lendas são por nós tratadas como uma coisa folclórica e mentirosa, mas ela mistura realidade e fantasia, e a gente esquece da realidade. A gente esquece de um miolo, mas só com um apurado e minucioso estudo que acha essa parte que é importante”, continua.
Dar o título a um santo de fujão é comum em diversos lugares. E o nome é literal: o santo é deixado em um lugar e no outro dia está em outro. Em Juiz de Fora, a história de criação da cidade, de acordo com Antônio Carlos, é ligada a história desse Santo Fujão, que, aqui, é o Santo Antônio, padroeiro da cidade. Ele conta que a lenda trata de uma questão de fundação. No Morro da Boiada existia um cemitério e uma capela: “um arraial fundado no melhor estilo mineiro do século 18”. Quando, então, decidem fazer a vila crescer para além do rio, como ele fala, constroem uma Matriz. O Santo Antônio da Boiada, que tinha na capela do morro, foi, então, levado a essa nova igreja, acredita-se que em procissão. No outro dia, no entanto, estava de volta o santo em sua igreja de origem, que era onde os moradores queriam que ele estivesse. E ficou assim por um tempo. A grande diferença, que o pesquisador aponta, é que, ao contrário das outras cidades em que existe essa lenda do Santo Fujão, ele, em Juiz de Fora, foi “preso”: a vontade da população que trazia de volta a imagem de Santo Antônio ao Morro da Boiada não foi atendida, e ela se manteve na igreja mais nova.
“Que bom que virou lenda, porque ficou protegida. Lindolfo Gomes, poeta de Juiz de Fora, quando ele recolhe essa história, ele diz que ouviu isso de um caboclo velho que repetia essa história. Ou seja, alguém teve o interesse de não deixar isso morrer”, diz Antônio Carlos. Mas ele, na verdade, luta para que essa história seja muito mais que lenda e passe a ser reconhecida como ele acredita que merece. E, por isso, escreveu dois livros sobre o assunto: “A devoção a Santo Antônio em Juiz de Fora – O Santo Fujão” e “A lenda do Morro da Boiada”.
Antônio Carlos ainda diz que outras lendas rondam aquele território, e, para ele, isso é fruto de uma tentativa de “ocultamento”. “O morro era assombrado. Eu já conversei com pessoas que diziam que não passavam pelo Morro da Boiada. Olha como isso é forte. E isso era pelo medo de passar naquele lugar por causa das assombrações.” Há quem diga que lá existem galinhas de todas as cores, fantasmas, fogo… O que não falta é história. E elas, inclusive, ultrapassam esse território.
Um viu, todo mundo vê
Em uma quase noite, no final da década de 70, um taxista chega à redação do Diário da Tarde, em Juiz de Fora, relatando ter visto um vulto de uma noiva nos arredores do que hoje é a casa noturna Privilège, no Morro do Cristo, que, na época, abrigava uma fábrica de tecidos. O editor do jornal, Carlos Neto decidiu colocar isso na edição do impresso do dia seguinte. O jornalista Renato Henrique Dias estava nesse dia. Ele era estagiário naquele tempo e conta que essa reportagem aguçou a curiosidade da população e acabou repercutindo. Logo em seguida, outra matéria falando sobre o aparecimento dessa noiva foi feita, já que, depois disso, as pessoas começaram a contar que também a tinham visto. “É só um falar que viu, que todo mundo vê também”, brinca José Luiz. Por mais que o tempo tenha passado, até hoje essa lenda é contada, e tem quem acha que encontra essa noiva até hoje naqueles arredores. “Ninguém sabia o que era. Vem da crença de cada um, mas atiça mesmo”, finaliza Renato.
Foi parecido, por exemplo, com o que aconteceu com a lenda do Capa Preta, que todo mundo conta, mas quase ninguém lembra como começou. A teoria mais conhecida é a de que viram um homem com uma roupa preta circulando pela cidade, de uma maneira estranha. A notícia também teria saído em um jornal e repercutiu. Dizem que ele sumiu de uma hora para outra, e ninguém sabe como, nem para onde. Dilly ainda pontua que algumas lendas costumam ter referência em outras de diferentes cidades. Essa do Capa Preta já apareceu por aí. Quando vêem coisa parecida por perto, é feita essa associação. E, sobre isso ser comum nessa época pré-difusão da televisão, José Luiz atribui ao fato de que, quando não se tem uma imagem bem definida, a imaginação consegue ir criando situações, e, por isso, fica mais fácil criar essas aproximações. “A televisão tirou isso, porque ela passou a mostrar as coisas, não precisava imaginar tanto. Está tudo muito pronto. Essa sociedade que te dá tudo imaginado e pronto diminui a cultura da invenção. O escuro é que faz a imaginação.”
Alguém viu um senhor?
Tem coisa, também, que a cabeça não consegue distinguir se é verdade ou mentira, mas o espaço ajuda nessa criação. O Forum da Cultura já foi sede da Faculdade de Direito. Onde hoje é a sala do Grupo Divulgação era o Instituto Médico Legal (IML). Por causa disso, muitos dos que já passaram por lá contam histórias de aparições misteriosas. Paulo Oliveira, ex-integrante do grupo, é um deles. Ele conta que, em um dia, enquanto ensaiava no teatro, desceu para ir ao banheiro e encontrou na porta um senhor de terno. “Eu cumprimentei ele e achei estranho porque ele não me respondeu. Quando saí do banheiro e fui subir, ele já tinha ido embora. Comentei isso e o José Luiz falou que era impossível ter alguém lá dentro que não fosse do grupo, porque o portão estava fechado. E ninguém quis ir conferir se era isso mesmo, aí ficou nisso. Mas, depois, comecei a ouvir mais relatos.” O fundador do Divulgação comentou que esse relato sempre se repete, e que a maioria das pessoas associa ao Benjamin Colucci, que vestia uma toga semelhante ao que é descrito nos relatos. Acredita-se, também, que possa ser um padre. Por lá, já viram uma loira com roupas brancas. Ao certo, ninguém sabe quem é.
Cuidado nos museus
Às vezes até uma foto pode captar esses seres estranhos. Uma, de quando a Estação Central ainda ficava isolada naquela região, chamou atenção daqueles que, hoje em dia, trabalham no Museu Ferroviário. “É um ser que a gente não consegue identificar, sem rosto, segurando uma coisa que parece ser um cajado, vestindo uma camisola, parece”, detalha Marco Aurélio Assis, supervisor geral do equipamento cultural. As situações inusitadas que costumam acontecer por lá são, agora, atribuídas a esse ser não identificado. Já ouviram badaladas do relógio inativo, crianças já falaram estar brincando com uma pessoa que ninguém enxergava, até caça-fantasmas já foi ao local e identificou a presença desses seres que sabe-se lá o que fazem por aqui. E histórias semelhantes já foram contadas por quem trabalha no Museu Mariano Procópio. Quando o escritor Laurentino Gomes veio a Juiz de Fora para escrever o livro “1889”, ele relatou, em seu blog pessoal, que também ouviu um relógio tocar. Ele, no entanto, de acordo com a equipe que o acompanhou na visita, estava inativo há tempos. O museu até se aproveita dessa história para elaborar atividades de visitas aos que não temem o desconhecido.
Continuar contando e acreditando
Dizem por aí que em Juiz de Fora nada dá certo, porque uma cabeça de burro foi enterrada por essas terras e fez desandar os tantos anos em que a cidade se manteve como umas das principais, seja do país ou do estado. Essa lenda, só com os relatos dos entrevistados, pode cair por terra. A cidade constrói, a cada dia, motivos para desbravar o passado e projetar para o futuro o que a cultura da oralidade, que todo bom mineiro preza, traz em sua essência: imaginação para criar e ir transformando.