Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, cerca de 600 pessoas escravizadas, nagôs e haussás, se reuniram em Salvador e deram início ao que seria conhecido como a Revolta de Malês. Era pelo fim da opressão, violência e intolerância religiosa que os negros sofriam no Brasil. Já 190 anos depois, na mesma data, o diretor e ator Antônio Pitanga, filho de uma mulher escravizada, estreia o seu filme contando essa história na praça da Mostra de Cinema de Tiradentes, acompanhado da família, que faz parte do elenco. “No meu filme, negro não é vítima”, conta para a plateia, que deixa esse chamado contra o preconceito se expandir, ao mesmo tempo que tem acesso a essa história, que era ainda pouco conhecida pelo público. Com estreia nos cinemas comerciais marcada para 10 de abril e uma série no Globoplay em vista, o filme também foi selecionado para o mais importante festival de cinema africano.
As revoltas de escravizados, no Brasil, nunca tiveram tanto destaque no audiovisual quanto a dominação dos brancos. Isso também foi um dos motes de Antônio Pitanga, que já dialogava sobre o filme com Glauber Rocha há muitos anos, e que recebeu também a motivação para fazer a obra audiovisual de João José Reis, autor de um dos livros mais importantes sobre as revoltas de pessoas nessa situação no Brasil. Para ele, vindo da Bahia e nascido no Pelourinho, era necessário deixar emergir esse griot das histórias africanas. Mas para pensar na forma de contar essa história, que teve o roteiro de Manuela Dias, era preciso entender qual seria a cor do filme – uma pergunta que ele mesmo conta que se fez várias vezes. “O branco já faz muito filme de negro sendo chicoteado. (…) Quis dar leveza. Não quero vender o chicote, o sexo, a tortura. Eu, Antônio, que cheguei do Pelourinho e participei do movimento do Cinema Novo, não quero ser vítima. E o que eu faço também não pode colocar nesse lugar”, destaca.
Nem mesmo boa parte dos brasileiros conhece verdadeiramente essas insurreições. Os atores do filme, por exemplo, revelam que foram se aprofundar na escola quando receberam os papéis. É o caso de Samira Carvalho, uma das protagonistas da história: “Até então, tinha ouvido falar alguma coisa, tinha lido um livro que passava um pouco pela história. Mas não conhecia de fato. Quando fui fazer o teste, comecei a pesquisar. E quando fui aprovada, me aprofundei nessa pesquisa e no conhecimento da Revolta”, conta. Quando se familiarizou com a história, viu que não estava tão distante dela assim – era presente no entorno, mas não estava sendo contada por quem devia. “Quando eu era criança, em Piracicaba, ia em um engenho de cana de açúcar que era tombado, era um lugar onde eu ia passear com a minha família no final de semana. (…) Quando fui aprovada pro filme, em algum lugar essa memória da infância voltou, e acho que eu me senti conectada ou familiarizada com a história.” A narrativa também conta com Camila Pitanga e Patrícia Pillar, além da atuação do próprio Antônio Pitanga.
Já para Rocco Pitanga, era uma história que chegou por meio do pai, e o que é melhor: ainda está chegando. “Eu comecei a atuar com 20 anos. Quando encontrava um colega negro em um teste, já sabia que era um só que ia fazer um personagem. E, de repente, estar em um filme que consigo ver vários grupos, com suas individualidades, todo mundo com seus sonhos, histórias e jornadas, isso é de uma importância enorme para as novas gerações. É ter a possibilidade de enxergar as coisas de uma outra maneira”, conta. Para conseguir esse efeito, Antônio Pitanga revela que, além de muito estudo e pesquisa, que incluiu aula de árabe para os atores, era uma questão de trazer um olhar para esse acontecimento vindo do século XXI. “A memória está lá, mas não queria fazer um filme só de macho. Queria que interagisse com a juventude de hoje. (…) Não é só um levante. É uma maneira costurada, entendida, vivida pela minha família negra e baiana que conhecia isso. E que a gente pode espalhar essa história para todos os lugares e quilombos do país”, diz o diretor.
Submissos ou revoltados
Um dos maiores ganhos da narrativa, na visão de Samira, é justamente esse lugar em que coloca os negros brasileiros escravizados e que também trabalha uma memória. “Talvez fosse interessante pra uma narrativa que a força dessas histórias não fosse contada”, diz ela. Mas isso mudou, como destaca Rocco, e trouxe a perspectiva para outro lugar: “A gente tinha uma história em que o negro era só submisso ou revoltado. Não. Tem muito amor, muito sonho, muita amizade e afeto. Eu acho isso muito importante para os momentos atuais que estamos vivendo”, diz.
Essa também é a importância que a atriz destaca. “Saber dessas figuras em ação e poder criar no nosso imaginário essa representatividade de pessoas pretas que vão à luta, que se organizam, que têm acesso à informação, à leitura e à escrita. Eram pessoas bem relacionadas entre si e individuais. Cada personagem na história tem características diferentes um do outro. E mostrar em 2025 que as pessoas pretas sempre tiveram sua força, poder, conhecimento e individualidade é um grande presente que esse filme nos proporciona. Eu cresci sem essa referência”, conta. Antônio Pitanga também ressalta que, como “Malês”, há outras narrativas fazendo esse trabalho muito bem, como “Medida provisória”, de Lázaro Ramos, “Kasa Branca”, de Luciano Vidigal (que também será exibido em Tiradentes) e “Marte um”, de Gabriel Martins.
Formação do povo brasileiro
O processo de levar a história de Malês para cada vez mais pessoas está só começando. Antônio Pitanga quer que ele esteja nas bancas de saberes: nas escolas, nas universidades, nos quilombos. Já foi no quilombo da Praia Rasa e em Harvard, Princeton e Universidade de Pennsylvania para falar sobre o filme. Continua recebendo convites. Em sua visão e sonho, é um filme que também tem esse forte papel educativo. E que também reflete a sociedade que somos e que queremos ser, enquanto nação.
Não é um filme para os “brancos da elite”, como conta, mas é um filme para todo o povo brasileiro: “Não é só uma história de negros, mas de brasileiros, povos originários, mulheres. São pessoas que fizeram um movimento contra todo tipo de escravidão, preconceito e invisibilidade. ‘Malês’ é uma luz.”
*A repórter viajou a convite da Universo Produção