Viver de arte, hoje em dia, pode até ser abstrato, como diz o rap "Autonomia é pra poucos", do grupo Contágio!, de Juiz Fora. Porém, a matéria-prima dos garotos e garotas que rimam em melodia a periferia da cidade é algo majoritariamente objetivo. "Eu já ganhei sorrisos falsos. Já ganhei tênis bonito, mas prefiro andar descalço. Autonomia é pra poucos, conhecemos os percalços", diz a letra. "A nossa linguagem é visceral, é sincera, não tem filtros. O rap é o dedo na ferida, tratando de assuntos que podem até estar nos meios de comunicação, mas por nós são ditos da forma mais próxima do real possível, porque não existe a verdade absoluta", comenta MC Oldi, 21, um dos nomes do Encontro de MCs, que semanalmente, sempre às sextas-feiras, apresenta a produção local de rap na Praça da Estação.
Branco, universitário e morador do Bairro Santa Catarina, na região central, Oldi canta as bordas sem fazer parte dela. Fisicamente, ao menos. As causas pelas quais discursa, na verdade, fazem parte de sua face humana, capaz de enxergar além do próprio umbigo. "Antigamente o rap era som de morro, no qual a gente só abria a boca para falar de problemas. Porque éramos do morro, éramos do rap. O branquinho não. Antes também fazíamos racismo. Não tínhamos a informação de que essa fronteira não existe. Todo mundo é irmão", reflete o rapper Aice, 39, um dos organizadores das Batalhas de MCs, morador do Milho Branco, Zona Norte.
"O rap era feito do gueto para o gueto. Hoje é do gueto para a sociedade. Ele movimenta tudo, mexemos em várias partes", diz MC Kell, 19, do Jóquei Clube, Zona Norte da cidade. "Éramos considerados como uma comunidade reprimida, que faz um som esculachado, de presídio. E não é mais assim. Agora um cara que mora no Bom Pastor pode ouvir o que eu faço lá no Jóquei. Há uns 20 anos, o pai dele não deixaria", completa. "Limitar e falar que só porque não sou da periferia não posso rogar por ela não faz sentido. Será que o cara da periferia precisa falar somente da periferia e não pode falar de filosofia também? Você pode representar sua área, mas não deve ficar limitado a ela", questiona MC Oldi.
‘A rua é nóis’
Alcançando cada vez mais popularidade e ganhando status de grife com Criolo e seu amor que não existe em SP ou Emicida e sua canção e seu hino "A rua é nóis", entoado em bailes distintos, do morro às boates de classe média alta, o rap tem equilibrado o lirismo de letras falando de amor e a agressividade da paz que, sem voz, é medo. "O que fazemos é a poesia com ritmo. Primeiro surgem os versos, primeiro é preciso falar alguma coisa, para depois pôr um ritmo nela. A temática é muito vasta. Quanto mais for inteligente para falar das coisas, melhor será o rap", defende MC Kell.
"Cada um se informa do jeito que acha necessário para poder passar sua poesia, que também é informação e não sai em jornal, em revistas ou na TV. Isso tudo que falamos está no cotidiano. Você pode se informar com algo ou muito bom e muito alegre ou muito ruim e catastrófico", comenta Aice. Segundo ele, a conscientização dos MCs de hoje, que têm acesso à internet e estão dispostos aos encontros, trouxe outras preocupações. A periferia é muito maior que a própria geografia pode dar conta.
Para falar dessa cidade que eles conhecem, das vielas ao Cultural Bar, onde a Batalha de MCs abriu o show do Emicida em 2013, esses artistas do hip-hop se reúnem no Centro, ocupando a Juiz de Fora que é do Lamarque MC, 17, do Santa Cecília, na Zona Sul e também do Souza MC, 18, morador do Santa Cândida, na Zona Leste. "O Centro não é um lugar de pessoas ricas. É um ponto de facilidade para que caras que moram em lados diferentes se encontrem. A gente precisa ver o Centro como uma via de acesso. A rua deve ser ocupada", expõe MC Oldi. "A maioria dos problemas sociais está na periferia, onde nunca nada é resolvido. Se perder esse discurso, acaba a essência. Estamos no Centro para sermos lembrados. Qualquer lugar dessa cidade é nosso. Já passou da hora de ocuparmos ela", brada Aice.
Nesse lugar de convergências, o hip-hop vê a harmonia de seus quatro elementos – rap, DJing, breakdance e grafite. A rua, dessa forma, é vista como extensão da casa e de seus habitantes. "Infelizmente, não só aqui em Juiz de Fora mas no resto do mundo, não existe mais a união dos quatro elementos. Tentamos uma conexão, mas é difícil. E isso enfraquece o hip-hop, porque essa é uma cultura solidária", aponta o b-boy Felipe Lourenço, 20, integrante do grupo Zumbreak Kingz e morador do Santa Cândida. Para MC Kell, o MC não consegue dançar e passar sua mensagem ao mesmo tempo, por isso existe a divisão, capaz de fazer com que cada um se expresse de uma forma, valorizando os detalhes dos gestos, das palavras, dos sons e das cores. "O sistema atua nesse processo de separar os elementos, porque ele sabe que, separando, o hip-hop perde a grande força que tem", acredita MC Oldi.
‘Seja você mesmo’
"Fico bolado com essas tretas o dia inteiro,/ Tudo no mundo se resume em uma coisa: dinheiro,/ Tu joga bola sonhando em virar um artilheiro/ Eu faço é rap com intuito de virar um guerrilheiro,/ Gangueiro que bate de frente e não fica de pista,/ lutando dia a dia contra o mundo capitalista,/ e mesmo que isso insista, te digo: não desista", canta MC Kell em seu primeiro single, "Mente revolucionária". Disponível na internet, a música, cujo refrão marca uma fala constante do rapper – "Eu vim pra revolucionar" -, reforça o vigor de uma cena jovem, ativa nas redes sociais e disposta a ganhar o mundo. "Juiz de Fora já teve várias fases do hip-hop. A primeira é da década de 1980, quando a cultura praticamente chegava ao Brasil. Hoje já estamos na quarta cena local. Cada uma teve seu estilo. Apesar de já termos vivido momentos bons, a cena hoje é uma das mais fortes", defende MC Oldi.
Os b-boys, cujo discurso está no corpo, também fazem parte desse momento produtivo. "Os b-boys antigamente eram gangues. Quando começou o break, passaram a se enfrentar na dança. As batalhas funcionam como uma luta para ver quem é o melhor, e isso não tem a ver com guerra, mas com um objetivo para evoluir", conta Felipe, o b-boy Stain, que começou sua trajetória no projeto da Prefeitura "JF nos Trilhos da Paz".
Diante de tamanha consciência da realidade e destreza em lidar com a arte como mecanismo para modificar o que enxergam hoje, esses jovens aguardam o dia em que sobreviverão da própria dança, do próprio pincel ou do próprio microfone. "Se vivermos à margem sempre, vamos continuar trabalhando oito horas por dia e fazer hip-hop quando dá. A gente não quer isso. Precisamos de uma mínima infraestrutura para fazendo um bom trabalho", reivindica MC Oldi.
Para o rapper RT Mallone, 18, do São Benedito, Zona Leste, não há voto de pobreza no que fazem. Eles falam da periferia com o intuito de vê-la melhor e ver suas vidas melhores. O rap quer viver de arte e quer que isso seja concreto. "O hip-hop não pede para você: seja pobre para o resto da vida. O hip-hop pede: seja você para o resto da vida", diz RT Mallone.
‘É possível fazer diferente’
Quando Evailton Vilela morreu deixou como legado a necessidade de se olhar para uma realidade que começava a se tornar comum entre seus amigos. "Eu já tinha perdido oito grandes amigos. Éramos um grupo de dez e só sobramos eu e mais um. Todos se foram, brutalmente assassinados. Nenhum deles deixaram menos de cinco filhos e todos eram negros. A morte do Evailton foi o fim de uma vida em que se olhava tudo com total passividade. E foi o início de uma trajetória com outras responsabilidades, encarando frente a frente os problemas", diz, com firmeza e segurança, Jefferson da Silva Januário, conhecido como Negro Bússola.
Nascido no Santa Efigênia, Zona Sul, em 1975, o rapper que hoje mora no bairro ao lado, o São Geraldo, decidiu não apenas homenagear os amigos, mas pagar o que considera ser dívida pela própria vida. "Aqui é onde eu passei toda a minha infância, onde eu vivenciei muitas experiências. Fui um desses jovens que dava problemas e, agora, tento mostrar para a minha comunidade que é possível fazer diferente. Passei pela vida do crime, fui usuário de drogas e tive a oportunidade de me transformar. A vida é assim, feita de oportunidades", analisa.
Com salas para o ensino de inglês e espanhol, curso de pedreiro e garçom, atendimento psicológico e fonoaudiológico, grupo de discussão sobre a autoestima feminina, reforço escolar, alfabetização de jovens e adultos e uma sala toda equipada para trabalhos em audiovisual, a Casa de Cultura Evailton Vilela é o reflexo das crenças de Negro Bússola no ser humano, como ele próprio diz. Na tentativa de preservar as muitas memórias individuais da região, ele também coordena o Museu da Memória da Pessoa Comum. "Aqui nós catalogamos a transição do bairro. Tiramos fotos novas e digitalizamos outras, para depois mostrarmos as transformações das ruas e das construções. Queremos manter a identidade oral e visual da comunidade, valorizando os nossos mestres", conta, dizendo que seu Marcos, que tem 105 anos, é uma das principais vozes dessas recordações coletivas.
Em 2013, ano em que a casa alcançou mais de 1.200 pessoas atendidas, foi iniciada uma obra de ampliação, na qual dois pavimentos darão lugar a uma grande sala para balé – já existem 325 inscritas – e outras salas para atendimento especializado. Ainda no último ano, a Prefeitura doou para a instituição o terreno ao lado, onde funcionava a quadra da extinta escola de samba Rosas de Ouro.
De acordo com Negro Bússola, a ideia é construir outras duas salas, sendo uma especificamente para o ensino de informática, além de um anfiteatro com a possibilidade de conversão para um salão multiuso destinado à comunidade. Para 2014, o rapper e lavador de carros, que encontrou sua expressão ao se tornar evangélico e fundir o rap com o gospel, espera colocar em prática um de seus projetos mais ousados: as primeiras orquestras filarmônica e sanfônica (de sanfonas) da periferia de Juiz de Fora. "Se eu me privar de lutar por minha comunidade, quem vai batalhar por ela? Quem vai apresentar uma oportunidade para os filhos dos meus amigos que se foram tão rápido?", questiona.