O livro infantil “Cadê a pipa do Pepeu?” nasceu da vontade de pai e filho levarem pro mundo algo que criaram juntos em uma das contações de história antes de dormir. A narrativa era contada e recontada, e assim foi ganhando ilustrações e novas camadas à medida que Decão (pseudônimo do pai, André Monteiro) e Armandinho (pseudônimo do filho, Miguel Monteiro Schetino Pires) inventavam. A história é sobre um menino que perde sua pipa preferida, e precisa lidar com a frustração de não encontrá-la e transformar essas sensações ruins em novas invenções de vida. O resultado é um livro editado pela Editora Voadora e que terá lançamento na livraria-café Autoria (Rua Batista de Oliveira 931, Centro) neste sábado (28), às 18h.
Mais do que um jogo de palavras e de entretenimento, André Monteiro considera que contar histórias para o filho é um “ritual de trocas afetivas”. Esse já é o décimo livro do escritor e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mas o primeiro no gênero literatura infantil. O que ele mais gosta no formato, assim como seu filho, é poder realizar uma montagem de livro que englobe duas áreas diferentes em uma única obra. “A ilustração e a relação da ilustração com a palavra”, explica Miguel, tímido com a iniciada carreira literária. Foi justamente a vontade do menino de criar imagens concretas a partir da oralidade que tudo começou. “Nessa brincadeira de jogar com as palavras e as imagens, o livro simplesmente nasceu”, define Decão.
Para André, esse processo de contação de histórias funciona como uma estrutura em espiral, e que foi se alterando com base no contato entre os dois. A história, afinal, permaneceu porque era a mais pedida pelo garoto. “A estrutura básica do enredo se mantém, mas a cada vez que você conta, algo diferente aparece no meio do caminho: novos detalhes dos personagens, novos cenários, novas ações. Dentro de uma estrutura circular que se repete, improvisos vão acontecendo a cada volta da espiral”, conta André sobre esse processo criativo. O mais legal, para ele, é que a história vai se perdendo do controle do narrador e ganhando vida própria tecida na relação entre a criança e o adulto. “A história deixa de ser uma história de adulto para criança e vai virando algo que acontece na relação afetiva entre os dois. A criança deixa de ser o ouvinte e passa a também fazer parte da invenção do processo”, conta.
Por conta da narrativa, entende também que é possível que as pessoas de todas as idades possam se identificar com o livro, se reconhecendo nessas sensações e brincando com elas. “Muitas coisas de nossa vida cotidiana como medos, alegrias, perdas, frustrações e superações vão entrando nas histórias, às vezes de modo inconsciente. É algo que se cria numa rotina de brincadeira e, ao mesmo tempo, nos leva a criar novas possibilidades de vida”, conta. Como define, a contação de histórias amplia a vida – acrescentando algo que a faz mesmo outra.
Processo artesanal do livro infantil
A ideia era fazer uma obra de arte pública, a partir da precariedade cotidiana, usando materiais que são facilmente encontrados em uma mochila de criança, como itens básicos de desenho, papel, tesoura e cola. Isso foi buscado por André por entender que assim seria um livro mesmo com “cara de criança”, não apenas para elas. “Trata-se de um livro propositalmente “mal-acabado”, se tomarmos como padrão os livros ‘bem ilustrados’ e feitos por adultos para crianças”, conta.
Por isso, a obra conta com borrões e digitais de uma criança de 7 anos (idade de Armandinho à ocasião) em seu processo de entrega ao desenho e suas relações com a palavra. “Acho que o que fizemos foi uma literatura punk-infantil”, explica, entendendo que ser punk é ter uma vontade forte de fazer uma coisa, não ter as ferramentas ditas adequadas segundo os padrões adultos para fazer essa coisa e fazer essa coisa acontecer assim mesmo. Publicar essa obra, em sua experiência, também é entender e dar valor a essa construção. E ainda uma aventura: “Não se pode prever o modo como as pessoas vão ler o que você produz. Então não sei o que os leitores vão fazer com o livro. Essa é a graça de se publicar. É um risco gostoso”, diz.
Ser um ‘escritor criança’
Os autores do livro são também seus personagens, e fazem parte da estrutura estética do livro. São, ao mesmo tempo, pessoas e linguagens. Por isso, como explica André, a decisão também de inventar pseudônimos como parte do processo de criação. O de Miguel foi escolhido, como revela, como uma homenagem ao Diego Armando Maradona, de quem ele é muito fã. Já André optou pelo apelido familiar, Decão, que é aumentativo de Deco, derivado de André.
A própria experiência de escrever um livro dessa maneira é capaz de alterar o sujeito. “Acho que o que se busca na arte é sempre uma tentativa de desaprender o que se sabe e entrar numa espécie de descoberta”, conta André. Para ele, há uma busca por se tornar criança, entrar num estado-criança, como se fosse possível assim olhar o mundo pela primeira vez. Não é uma obra, então, feita por apenas uma criança, mas duas nesse estado de infância. “Acho que toda experiência poética nasce um pouco de uma vontade de se lançar a um estado desconhecido. E isso é muito difícil porque estamos muito carregados de nossas heranças culturais, nossas referências, nossas leituras de adulto. No meu caso, o que desejo sempre com meus livros (e nem sempre alcanço) é descobrir um estado de gratuidades. (…) Tornar-se criança é, então, uma busca por viver de graça. Conquistar uma vida mais ligada ao ócio do que ao negócio”, diz.