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Deborah Colker fala sobre ‘Nó’, que traz nesta quarta a JF

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Espetáculo revisado 12 anos depois reúne 120 cordas no palco, durante o primeiro ato, para discutir o desejo e as tensões que dele brotam (Foto: Divulgação)

NÓ INTERNA
Espetáculo revisado 12 anos depois reúne 120 cordas no palco, durante o primeiro ato, para discutir o desejo e as tensões que dele brotam (Foto: Divulgação)
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Era a semente, era a raiz, era a corda que puxava toda uma nova linguagem. Era “Nó” que desatou em Deborah Colker um gesto cujo ápice foi percebido há menos de três meses, quando a coreógrafa subiu ao palco do Teatro Bolshoi, na Rússia, para receber o Prix Benois de la Danse, considerado o mais importante prêmio da dança no mundo, por seu mais recente trabalho, “Cão sem plumas”, espetáculo no qual reúne a poesia de João Cabral de Melo Neto, o Rio Capibaribe, o sertão e o cinema de Cláudio Assis (co-diretor). Aquele trajeto tinha um ponto de partida. E nele Deborah resolveu se ater. “‘Nó’ foi um espetáculo emblemático para mim, foi a minha virada. E quando terminei ‘Cão sem plumas’ tive a impressão de que precisava retomar de onde comecei, reviver”, conta a coreógrafa em entrevista por telefone à Tribuna, dois dias antes de desembarcar em Juiz de Fora para apresentar seu novo “Nó”, nesta quarta, às 20h, no Cine-Theatro Central, comemorando os 50 anos da Petrobras, patrocinadora da companhia, em Minas.

“Eu vinha desenvolvendo um trabalho da relação do movimento com o espaço, estudando a construção de um corpo, os gestos do cotidiano, relacionando as ideias com a dança, desde 1993, quando a companhia começou. Ao fazer o ‘Nó’, tive uma mudança na dramaturgia, na necessidade do tema, do assunto. É um espetáculo que fala sobre o desejo como condição de humana. Tratei e fui buscar a relação do movimento com o espaço de uma maneira muito diferente. Foi a virada radical. Foi a montagem que mais demorei, três anos e meio. A companhia começou a fazer aula de filosofia. As cordas, o objeto do desejo, está entre os bailarinos, os duos, os trios e os quartetos. Tem 120 cordas penduradas que formam uma grande árvore, depois dividimos em quatro nós, depois prendemos e soltamos. Esse processo foi todo complexo. E mesmo eu tendo demorado esse tempo todo, mesmo sabendo que ele representava uma mudança para mim, sabia que não havia explorado tudo”, recorda a artista.

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Apenas dois dos 14 bailarinos da companhia que leva o nome da coreógrafa haviam dançado “Nó”. Passados 12 anos de sua estreia, o espetáculo encontrou, novamente, os ares de novidade. “Tive, agora, a chance de olhar para o ‘Nó’ com o olhar de agora. Antes eu precisava de um caminho novo. Agora, já dentro desse novo caminho, olho para trás e volto para saber a importância dele, para entender o que não consegui desenvolver por não ter maturidade suficiente”, comenta Deborah, que dividiu seu “Nó” em dois atos, o primeiro marcado pelas cordas e o segundo, por uma caixa transparente criada pelo cenógrafo Gringo Cardia a desnudar os movimentos por outros ângulos. Na releitura, o primeiro ato passou de 41 minutos para 59. A caixa reduziu de tamanho. “Hoje entendi que os dois atos são um espetáculo só. Antes, para mim, as cordas estavam na natureza e a caixa era mais urbana. Não é isso. As cordas estão nas vísceras, conecta com a raiz, com a gênese da natureza humana. E a caixa é mais racional, cerebral”, diz.

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Segundo Deborah Colker, um dos mais importantes nomes da dança contemporânea brasileira e mundial, esse é o primeiro retorno que faz ao repertório alterando a versão original. “Em 2016, fiz o ‘Vero’, juntando ‘Velox’ e o segundo ato de ‘Rota’. Não modifiquei. Era aquilo. Já remontei ‘Tatyana’, e não mexi, montei como criei. Cada espetáculo faz parte de um repertório, e é importante que ele seja respeitado, porque mostra que, naquele momento, eu estava de um jeito e montei o espetáculo daquela forma. Cada passo que dou, cada novo espetáculo, vou me modificando, amadurecendo, seguindo outros caminhos”, pontua ela, para logo acrescentar: “Já comecei a pensar no próximo espetáculo, mas precisei voltar ao ‘Nó’ para dar o próximo, para me reorganizar, como um escritor, que precisa mudar o roteiro do livro, ou palavras, para concluir um trabalho. Modifiquei músicas e quase escrevi um libreto. Quase tenho personagens lá dentro. Tem duas cavalas que dançam juntas na árvores. Depois se amarram. Depois fazem parte de um quarteto. Elas vivenciam momentos diferentes. As cordas tomaram uma trajetória dramatúrgica de muita coerência.”

‘Parto de uma folha branca’

Experimental, longo, autoral, inventivo. Os adjetivos que Deborah Colker usa para descrever o próprio processo de criação parecem sintetizar o que caracteriza todo o seu trabalho: a complexidade. “Parto de uma folha branca. Não existe uma fórmula de como trabalhar com cordas, como danças com um amarrando o outro, com um sendo o dominador e o outro sendo dominado, como trabalhar trios, quartetos e quintetos com cordas. São descobertas que demandam tempo, estudo e conexões com outras técnicas. Para o ‘Nó’ me aproximei da técnica da ‘bondage’, de amarração erótica em que tem o dominador e o dominado, estuda essa relação de poder com escolha, já que quem domina quer dominar, com desejos e necessidades diferentes. Vou estudando e me abastecendo de um caminho teórico de que universo é esse do desejo, da condição humana. Somos seres desejantes e convivemos com o desejo, permitido ou não. São muitas as discussão e os pensamentos, estudados racionalmente”, explica a coreógrafa, que sem simplificar sua produção é capaz de elaborar obras acessíveis e, sobretudo, instigantes e sedutoras, o que se justifica, de alguma forma, nas questões essencialmente que se impõe para criar. “Como o corpo se apropria da reflexão? Como o gesto surge a partir daí? Fui buscar inspirações importantes para mim num animal como o cavalo. E fui transformar um corpo humano no corpo de um cavalo, pensando nas pernas, na beleza, na potência, na selvageria, no vigor, na violência, na delicadeza. Vou experimentando, buscando instintos, sentimentos e compreensões”, comenta.

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Dona de uma caligrafia própria e absolutamente múltipla, Deborah Colker defende investigar a natureza humana. “Já falei sobre o amor, a força do instinto, e o desejo é outra força. Do que nós somos feitos? Independentemente da nossa condição social e política, dos nossos personagens, do que adquirimos na vida, somos seres humanos, e o desejo faz parte da nossa necessidade”, aponta. “Construo tudo no processo. Até em ‘Cão sem plumas’, em que eu tinha um poema fechado, o discurso e o processo, sobre a parte do poema, do que vai ser dito, o roteiro, surgiram durante a criação. Um dos motivos que me fizeram voltar ao ‘Nó’ é que eu saí de um momento de muito pop, desenvolvendo uma coisa e pulando para outra, cenicamente, e o ‘Nó’ necessitava de um tempo para aquela coreografia, para o desenvolvimento daquele pensamento. Quando falamos de dominação, precisamos de um tempo, para mostrar quem domina, quem é dominado, como isso se estabelece. E eu queria mais, pisar fundo no acelerador. Começo com um duo no ‘Nó’ que, na primeira montagem, durava 45 segundos. Agora dura cinco minutos. Eu trouxe uma canção com uma letra, novas necessidades de como representar algo”, completa.

Intensa da poesia à novela

O premiado décimo trabalho da Companhia de Dança Deborah Colker, “Cão sem plumas”, reflete o aprendizado de todo o percurso e também a ousadia de uma coreógrafa diante de seu próprio território, pela primeira vez tematizado em sua produção.”É um trabalho sobre o inadmissível, o inconcebível. Me percebo, agora, com uma necessidade muito grande de falar sobre a outra condição humana que é a da luta, da resistência, da teimosia, de não aceitar aquilo que, para você, é inaceitável. O espetáculo se apresenta para mim como a humanidade em transformação, e a necessidade de evoluir, de encontrar o fundo mais fundo, a afirmação de quem realmente somos. O ‘Cão sem plumas’ me mostrou a necessidade de que meu trabalho fale sobre a luta, como se a dança pudesse tomar o lugar de expressar do que precisa ser dito lá dentro. Demorei a chegar a esse lugar. Passei pelo processo de entender que a dança começa no corpo, depois fui construir um corpo, um movimento, um corpo no espaço, depois falei sobre a condição humana, os sentimentos, e agora falo sobre que homem é esse, a que lugar ele pertence e o que afirma quem ele é. João Cabral (de Melo Neto) fala sobre isso: da tragédia e da riqueza simultâneas, do homem que derrubam dele até o que ele não tem, mas ele se mantém como guerreiro, porque o lugar é dele”, emociona-se a coreógrafa da companhia que completa 25 anos de história este ano.

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O trabalho, segundo Deborah, amadurece cada vez mais. Amplia-se e sofistica-se, enquanto as condições de produção confrontam-se com a crise. “Não é fácil manter uma companhia com 14 bailarinos e com esse padrão de qualidade. Preciso, diariamente, ter uma super boa aula de dança, preciso de duas horas, das oito, para me dedicar à evolução técnica de cada bailarino da minha companhia, que é internacional. Nas horas restantes administro meus processos de criação. Esse ano ficamos muito tempo em cartaz com ‘Cão sem plumas’, simultaneamente construindo ‘Nó’. Financeiramente não é fácil. Tenho pouco dinheiro para a ambição do meu trabalho. Mas acho que quem reclama já perdeu, então, estamos trabalhando”, diz a artista que acabou de estrear, na última sexta-feira, 24, no Teatro Bradesco, no Rio de Janeiro, o musical “O frenético dancin’ days”. “É um espetáculo que o Nelsinho Motta, autor dessa peça com a Patrícia Andrade, falou que é o oposto do ‘Cão sem plumas’. Porque um entra lá dentro da terra, vai na raiz, e o Dancin’ Days é algo leve, uma estrela, um cometa. Mas se encontram na intensidade, porque um é intenso na profundeza, na pele, e o outro, intenso na alegria, na necessidade de trazer bons fluidos. Essa peça me deu muita alegria. Ela é muito eu. É um olhar meu mais de 40 anos depois do ‘Dancin’days’. E acho que consegui trazer para o agora. Tive que me apaixonar rápido. Estou acostumada a demorar dois ou três anos num trabalho, e tive dois meses e uma semana de ensaios para essa peça. Foram quatro meses de processo de criação só. Fiquei duas noites sem dormir de ansiedade”, conta, aos risos, a artista em constante, contínuo e aprimorado movimento.


Espetáculo da Companhia de Dança Deborah Colker nesta quarta, 29, às 20h, no Cine-Theatro Central (Praça João Pessoa s/nº – Centro)

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