As amplitudes das montanhas que desenham a música é criada no instante em que os três, Dudu Lima, Ricardo Itaborahy, Leandro Scio, milagrosamente, posicionam-se ante o silêncio e começam a sentir e tatear seus instrumentos até que uma nota é ecoada pelo trio, no mesmo milésimo de segundo. A virtude do Dudu Lima Trio está no que a música os recompensa enquanto parceiros de vida e de composições criadas inesperadamente no calor azul do momento.
“O trio para mim é a formação ideal, porque cada hora somos um elemento ali, nada é definido, e a gente não pode se permitir estar oculto, temos que estar no diálogo o tempo inteiro. Na questão rítmica, de harmonia, profundidade, e uma característica minha é a de tentar criar o ambiente musical, esses efeitos espaciais e atmosféricos, às vezes por trás, com delicadeza, um som que você percebe que está dando uma liga. Gosto de criar uma ambiência sonora que faça o Dudu se sentir bem para tocar e que corresponda àquilo que ele e o Leandro estão propondo. Essa afinidade e convivência de nós três dá esse conforto de, às vezes, nem pela nota, mas pelo silêncio, eu já saber o que um instrumentista ou o outro está me sugerindo. A gente até se olha pouco, mas está o tempo inteiro conectado no som. Conviver e tocar há tanto tempo gera uma virtude de querer ver a alegria do outro ser aplaudido, de querer ouvir bastante o outro instrumento e comprar a ideia do outro naquele instante. Quando estamos ensaiando ou fora do palco e conversamos sobre o trio, falamos sempre sobre manter essa criação verdadeira, sem nunca entrarmos em um piloto automático ou na música pela técnica somente”. (Ricardo Itaborahy, que teve seu primeiro encontro com Dudu Lima em São João Nepomuceno (MG) há aproximadamente 30 anos, quando formaram uma banda de baile, junto a Emmerson Nogueira).
Na última terça-feira, 27, foi noite de Dudu Lima Trio no Blue Note do Rio de Janeiro. A casa de jazz, renomada mundo afora, fica no visual da Lagoa Rodrigo de Freitas. Após correr 7km pela manhã e estar com a endorfina lá em cima, Dudu pega o carro e vai ao Rio de Janeiro, chega para a passagem de som, depois se recolhe em um camarim, onde permanece por cerca de quase uma hora em silêncio, apenas ouvindo sons. Aprendeu com Mauro Continentino que as palavras podem ser nocivas para a música instrumental, é preciso esvaziar-se de pensamentos, como se fizesse uma meditação para receber as sensações e traduzi-las em música da forma mais cristalina possível. Ao chegar ao palco para a passagem, fica por cerca de uma hora, com os três baixos – acústico, elétrico e fretless -, apenas manuseando e tocando como se aquecesse os dedos.
A convite da produção, acompanhei todo o processo do trio, começando a viagem de Juiz de Fora ao Rio junto ao pianista Ricardo, ao baterista Leandro e à produtora e assessora Lygia Alcantarino, que, além de ser compositora, há dez anos trabalha com o trio. Após a chegada à capital carioca, presenciei a passagem de som, o cuidado de cada um com a montagem de seus instrumentos, principalmente Leandro, que une os elementos da sua bateria percussiva, testando peça por peça, e depois a bateria junto às teclas e ao contrabaixo. Ricardo, além de um teclado Yamaha que usa como sintetizador para ampliar suas possibilidade de timbres, estava com um Roland RD 800 com a extensão de sete oitavas e um piano de cauda preto Yamaha que brilhava como um espelho, fazendo com que eu fotografasse suas mãos pelo reflexo.
Som orgânico
O início do show é uma introdução livre, um tema de abertura composto espontaneamente para se unir à “Canção do sal” (Milton Nascimento). Decidiram que começariam com o som mais orgânico possível, Dudu com seu contrabaixo acústico sem nenhuma compressão e Ricardo no piano de cauda. No âmago da canção, criam um improviso e depois retomam a melodia original. “Ela tem uma harmonia muito instigante, começa em um tom maior e depois vai para um tom menor, tem vários acordes passando, abrindo muitas possibilidades de fraseado. Quando você vai falar, ela te dá muito assunto. A improvisação durante a interpretação de uma composição é feita usando exatamente a mesma harmonia composta originalmente, o chão que a gente está andando é o mesmo que o Milton usou para tocá-la, só que criamos uma outra melodia por cima”, conta Dudu sobre o que é recriado a partir da estrutura principal de canções de músicas brasileiras, principalmente mineiras, neste caso a faixa do álbum “Travessia”, de Bituca.
Para uma noite de terça-feira, apesar das poucas mesas ocupadas, Dudu surpreendeu-se com o público que compareceu, entre eles, alguns amigos e músicos. Todos completamente atentos à música, faziam silêncio para sentir a performance do trio. O show começou por volta das 21h e se estendeu por cerca de uma hora e meia.
As mãos de Ricardo dançam sobre as teclas, e suas harmonias vocais fazem com que seu corpo também se desprenda metafisicamente para que a voz torne instrumento, as notas estão todas em sua mente, som por som, ecoando de maneira natural e complementar ao teclado. No microfone usa um reverb longo, na intenção de fazer da sua voz mais uma camada de efeito. Dudu Lima fecha os olhos e absorve aquele momento, bate no corpo do contrabaixo fazendo dele uma percussão. Enquanto isso, Leandro tira sons minimalistas de sua bateria e raspa uma das baquetas em um dos rides, como se fizesse um som de ranhura, produzindo um som áspero que contrasta e dá cor ao som cristalino e profundamente comunicável. Cada parte de seus pratos é aproveitada unicamente para ampliar a infinitude de possibilidades que a bateria lhe entrega, por vezes, apenas a cúpula e arco são tocados, em outros momentos cria um som de percussão mais tribal junto à caixa bastante harmônica, os tons e tambores com sons mais secos, já seu bumbo bastante marcado é carregado de emoção, combinado ao som dos nossos batimentos a todo momento atravessados pela oscilação dos sons.
Inspiração na tarde azul
Ricardo e Dudu deixam o palco para que Leandro o preencha com um solo de tirar o fôlego dos olhos de quem tenta acompanhar seus movimentos. “Eu procuro anexar à bateria elementos de percussão para criar essa nuances, dinâmicas e climas que a música tem. A ideia é criar uma identidade dentro de um instrumento que tem um padrão, só que cada um põe a sua cara e personalidade. Os pratos eu gosto muito dos turcos feitos artesanalmente, timbrados à mão, em uma técnica milenar”, descreve Leandro sobre sua bateria. Além de pratos de efeito, ele usa cowbell, tamborim, chocalho, triângulo, coquinho, molhos de chaves e caxixi para se chegar à mistura rítmica do trio que dentro de uma mesma música coloca baião, maracatu, samba, jazz, afoxé, música mineira, além de rock progressivo que é sua influência base.
Após o solo, a retomada do baixo e do piano surge com uma criação espontânea de Dudu Lima, compõe a música em um solo e já a batiza de “Tarde azul”, que funcionou como um prelúdio para “Jesus alegria dos homens” e o folclórico “Peixinhos do mar”. “Quando o Ricardo faz aquele som acústico do piano, ele me estimula a criar sons percussivos no instrumento, nada é planejado. Hoje, por exemplo, a música ‘Tarde azul’ foi feita na hora do show, composta naquele momento. Quando chegamos à tarde no Blue Note eu fiquei olhando a paisagem, e foi feita para esse dia, fiquei pensando que era bom estar aqui, uma celebração com os amigos, e a ideia de convidar o Dudu Viana tem a ver com esse encontro, porque foi um músico que participou disso tudo. E o trio é um centro que estimula tudo acontecer, as composições, a nossa irmandade, isso tudo é muito raro e inspirador. Essa composição transmite positividade e agradecimento, e quando a música te aceita e responde esse encontro parece que forma uma aura, e a tarde estava representando isso, ela chegou forte na minha cabeça e foi se desenhando de uma forma muito interessante, mostrando como a gente consegue superar os desafios que a música e a vida nos impõem. O azul é em homenagem ao Blue Note porque a casa tem um astral muito musical, a qualidade do som, do técnico e de tudo que está a serviço da música ajuda muito a gente a produzir resultado, além disso o azul é a sensação de que a gente deu nosso melhor e as coisas aconteceram de forma surpreendente. Essa ‘Tarde azul’ é uma gratidão por tudo que conseguimos viver pela música que fazemos”, fala Dudu.
Bem-vindo Dudu Viana
“Clube da Esquina n° 2” entra em sequência para estampar a universalidade da música mineira, que de tão simples e bela melodicamente consegue tocar as pessoas e possibilita que o trio coloque toda a sua complexidade na harmonia, sendo um bom exemplo de como Dudu Lima Trio se aproxima do erudito em seus estudos e inspirações, mas sempre buscando, primordialmente, uma música que comunique e aproxime do público. Tanto é que, logo em seguida, Dudu desce e começa a tocar entre as mesas do Blue Note, atingindo diretamente cada um que esteve presente. Chegando já ao final do show, o convidado da noite, o pianista e tecladista Dudu Viana, que fez trio com Dudu Lima antes da entrada de Ricardo, toca “Dois e dois” e “Rapadura doce, mas não é mole não”, esta última gravada com Hermeto Paschoal. O show encerra-se com a volta de Ricardo Itaborahy tocando “Nada será como antes” e um bis triunfal de uma mescla de suítes do Clube da Esquina, sobressaindo “Fé cega, faca amolada”. A música do Dudu Lima Trio é criada nos intervalos mais puros da imaginação, nos espaços onde a poesia é a única motivação, esquiva-se de definição e vislumbra a liberdade como único caminho musical e espiritual.