“Há um discurso do medo: se eu não for de tal modo, não fizer de tal maneira, não vai dar certo. Existem os padrões: dos países que deram certo, das empresas que deram certo, dos modelos que funcionam. E tudo isso é imposto para a gente o tempo todo. Não sei se essa roupa cabe na gente. Quero vestir o que fica confortável para mim. E se estou aqui, o mundo precisa ter um lugar para mim, com a roupa que quero vestir. Desde que não esteja infringindo a lei, posso ser quem quiser”, filosofa Gláucio Anacleto de Almeida, que, com calça e camisa largas, ambas brancas, contrastando com o vermelho da faixa que leva na cintura, quis ser capoeirista. A veste que conjuga pés livres lhe caiu bem. “A capoeira me mostrou a liberdade, e é o que trago comigo e passo aos meus alunos, familiares e amigos. Temos o direito de ser livres. E a liberdade não é só minha. Isto é Sartre: quando penso na minha liberdade, assumo o compromisso de aceitar a liberdade do outro também. E é preciso exercitar na prática, com coragem, diz ele, professor de filosofia nas salas de aula da rede municipal de Rio das Ostras, no Rio de Janeiro, e filósofo das rodas nas quais o berimbau dá o compasso.
“Capoeira é cultura popular, é militância, é resistência. É atitude, sobretudo. Tem uma série de coisas que não estão na roda, na prática, mas é capoeira. Aprender a lidar com a adversidade e com a diversidade, principalmente”, aponta o Mestre Cuité, nome que Gláucio assumiu desde que se vestiu com as roupas de uma expressão tipicamente brasileira. “A capoeira surgiu como luta em busca ou para a manutenção da liberdade, entre africanos e descendentes no Brasil. Até hoje, o que a gente faz na capoeira é se manter nessa briga, porque vivemos num mundo onde tudo é enlatado. Tudo tem o mesmo sabor, o mesmo cheiro, o mesmo aspecto. E é preciso tentar, o tempo inteiro, preservar a identidade, os valores, o que constitui nosso ser. Para isso é importante não perder de vista os elementos de sua cultura. Tenho meus olhos voltados para o samba, para as religiões afro-brasileiras, para o movimento hip-hop e para a cultura em geral. É isso que fortalece e impede de ficarmos engessados”, completa ele. “A capoeira é uma lente que me ajuda a enxergar o mundo.”
Meia-lua de compasso
A Rua do Meio, a Carandaí, no Bairro Bonfim, Zona Leste da cidade, onde Gláucio nasceu e foi criado, não era muito diferente de como é hoje. “Drogas e tráfico também já existiam quando era adolescente, convivi com essa realidade, mas vi e vivenciei outras coisas”, recorda-se ele, que, dos 5 aos 8 anos, praticou karatê. “Aos 11, uns amigos de perto de casa me convidaram para uma atividade de capoeira no bairro, com o Mestre Pinheiro. Fiquei o período de férias e gostei, muito mais por estar perto dos meus amigos. Resolvi continuar e fui me envolvendo cada vez mais. Sempre gostei muito de samba, desde garoto, de desfilar em escola de samba e tocar em bateria. Tinha a escola do bairro, a Imperatriz da Zona Norte, mas participei de outras escolas da cidade também. A brasilidade da capoeira me encantou. Encontrei música, diversão, uma luta, defesa pessoal, muita camaradagem e pessoas diferentes. Fui me envolvendo até querer viver disso e para isso”, conta o homem que trabalhou como técnico em processamento de dados, digitador, monitor de projeto social, instrutor de datilografia, dentre outras atividades, até que deu uma “meia-lua de compasso” (movimento em que levanta a perna e roda fazendo um semicírculo com as mãos no chão e de costas para o oponente) na vida e foi honrar o apelido Cuité. “É um fruto de uma árvore que dá uma cuia, muito usada antigamente pelos escravos. Os maiores serviam como prato ou pote, num formato próximo ao da cabaça do berimbau, feito de abóbora seca. Na capoeira, são comuns os apelidos. E como eu tenho o hábito de raspar o cabelo desde os 17 anos, por não suportar ficar suado na cabeça, recebi o apelido de Cuité pelo formato da minha cabeça.”
Ginga
O que Cuité faz hoje é um pouco do que lhe foi feito anos atrás, quando a roda o chamou. Aos 43 anos, ele coordena a capoeira do programa municipal Gente em Primeiro Lugar, que leva a expressão a 25 bairros de Juiz de Fora, mostrando que, como na capoeira, é preciso ter “ginga” (movimento que se assemelha a uma dança, na qual o jogador baila de um lado para o outro) para enfrentar o dia a dia. “Hoje tento multiplicar uma iniciativa que já tive antes. Trabalhei por muitos anos no Clube Flamenguinho, tradicional no bairro. Sempre demos muitas bolsas, por dois anos fomos apoiados pela Lei Murilo Mendes, até que um destelhamento nos fez mudar de lugar, e o projeto desarticulou. Desde o começo, em 1991, pensava em trazer os meninos para a capoeira, direcionando para coisas boas. Hoje, infelizmente, aquela região carece de espaços. Não sou adepto do discurso salvacionista, mas do discurso de que as pessoas precisam ter oportunidade de conhecer as coisas para, assim, decidir pelo melhor”, comenta ele, filho único de um eletricista com uma enfermeira, até os 21 anos, quando os pais adotaram um prima. Fruto da oportunidade e do incentivo da casa, Cuité encontrou outras tantas oportunidades. “Iniciei com o Mestre Pinheiro, depois fui aluno do Léo e, em seguida, fui para um grupo de Belo Horizonte, Porto de Minas, por dez anos. Após esse tempo, comecei a desenvolver um trabalho independente em Juiz de Fora”, lembra. Em 1993, entrou para a faculdade de filosofia. “Mas pintou uma oportunidade de trabalho com a capoeira. Abandonei a faculdade e fui para o Japão fazendo apresentações durante seis meses. Quando voltei, havia uma febre da capoeira no Brasil, e eu acabei não voltando para o curso.” Entrou na roda e, dez anos mais tarde, voltou à filosofia.
Aú
A sala de aula do professor Gláucio também é do Mestre Cuité. “A questão de fundo da filosofia é sobre o sentido das coisas, o que existe quando trabalho com a capoeira. Além disso, só há como ensinar e aprender se houver empatia. Um conteúdo do caderno, para ganhar vida, exige empatia, e capoeira é isso, é muita proximidade. Aprendi com a capoeira como trazer meus alunos de filosofia para perto”, diz o homem que há 25 anos divide a vida com a companheira Alessandra, com quem teve as filhas Clara e Alice. “Tudo o que gosto faço por muito tempo”, diz, sorrindo. É capoeirista em casa? “Tento lidar com minhas filhas do modo como fui criado. A palavra convence e o exemplo arrasta, diz muito um amigo meu. Tento fazer isso. E que elas tenham seus espaços de liberdade”, responde ele, que há três anos conquistou a corda vermelha que carrega na cintura, título máximo de sua prática. “Tive o prazer de ter a presença de 25 mestres de capoeira, de Juiz de Fora, São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades, numa cerimônia de reconhecimento como mestre. Não passei a fazer nada do que já fazia, mas fui reconhecido”, conta ele, mostrando que o “Aú” (movimento parecido com uma estrela, com o qual o jogador se desloca) serve para entrar em qualquer roda, onde haja berimbau ou não.