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Mulheres aterrorizantes: ‘O dia escuro’, coletânea de contos, é lançado no Halloween

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Vinte escritoras brasileiras participam com contos inquietantes lançados no Dia das Bruxas (Foto: Divulgação Companhia das Letras)
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A coletânea de contos “O dia escuro”, da Companhia das Letras, reúne 20 mulheres brasileiras que escreveram contos inquietantes. Com proposta de explorar um terror moderno, a ideia de Fabiane Secches e Socorro Acioli, as organizadoras, era trazer perspectivas diferentes para o gênero, em que cada uma contasse uma história desse ponto de vista que flerta com o medonho. O lançamento da obra será justamente no Halloween, também conhecido como Dia das Bruxas, na quinta-feira (31), quando essas mulheres reinventam o que dá medo e tomam para si o lugar de contar essas histórias.

O Halloween é uma festa popular norte-americana, que brinca com criaturas sobrenaturais e que faz com que a população engajada possa personificar personagens como bruxas, vampiros e zumbis. No caso dos contos, por sua vez, as situações mais cotidianas também viram foco do que dá medo – e na maioria das vezes, isso não é nada distante da realidade. 

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As autoras são Amara Moira, Ana Rüsche, Andréa del Fuego, Carola Saavedra, Cidinha da Silva, Dia Nobre, Eliana Alves Cruz, Fabiane Guimarães, Flavia Stefani, Jarid Arraes, Laís Romero, Lygia Fagundes Telles, Marcela Dantés, Maria Valéria Rezende, Mariana Salomão Carrara, Micheliny Verunschk, Natalia Borges Polesso, Natércia Pontes, Socorro Acioli e Trudruã Dorrico. A Tribuna entrevistou Fabiane Secches sobre a criação da obra e a seleção desses contos.

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Fabiane Secches é uma das organizadoras da coletânea (Foto: Fabio Audi/ Divulgação)

Tribuna:”O dia escuro” está sendo lançado no Dia das Bruxas e é um livro feito apenas por mulheres. Você sente que há uma percepção do que seria uma “bruxa” que foi mudando com as décadas e que também impactou a produção das histórias?

Fabiane: Quando a escritora Socorro Acioli propôs a ideia de uma antologia de contos de terror escritos por mulheres brasileiras e me convidou para compartilhar com ela a organização da obra, ainda não sabíamos que o livro seria lançado no Dia das Bruxas. Mas ambas ficamos contentes quando a editora, Stéphanie Roque, fez essa sugestão — um arranjo bem afinado com a atmosfera da coletânea. Quanto à percepção do que seria uma bruxa, vemos que sim, ela foi se modificando ao longo dos séculos, e essa mudança permanece em curso. Basta pensarmos nos contos de fada antigos ou na Inquisição, por exemplo, e temos exemplos de outras acepções do termo e de suas implicações. Gosto da ambiguidade que a imagem da bruxa provoca. Como psicanalista e como leitora, me interesso bastante por essas ambivalências, então as novas possibilidades de interpretação também me instigam. 

Como a decisão de trazer autoras de diferentes partes do país impactou no resultado final? Sente que já havia um diálogo entre a obra dessas mulheres?

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A intenção, desde o início, foi construir uma obra heterogênea, diversa, que comportasse uma pluralidade de vozes, estilos e acepções do gênero — quer seja o social, quer seja o literário. Para isso, era importante tentar contemplar autoras de diferentes localidades e histórias de vida. 

Quanto ao diálogo entre a obra dessas autoras, todas compartilham o mesmo espírito do tempo e escreveram esses contos no português brasileiro. Então, de certo modo, é possível dizer que havia uma relação anterior entre a obra dessas mulheres — a língua, a cultura, o tempo. E como tomamos como ponto de partida um conto de Lygia Fagundes Telles, é difícil negar a influência direta ou indireta, consciente ou inconsciente, de uma grande autora como ela. Por isso, podemos considerar que essa referência guiou e iluminou o caminho de todas as escritoras do livro, cada uma à sua maneira.

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Os contos de terror têm muita força na América Latina. De que forma essas 20 narrativas trazem o Brasil para foco dessa produção?

Algumas já tinham experiência com o gênero, outras escreviam histórias que flertavam com o estranhamento. Decidimos convidá-las para enviar contos sombrios, não necessariamente com elementos sobrenaturais, mas que, de alguma forma, tratassem do medo, da angústia, da repulsa, da inquietação. Afinal, chamamos de contos inquietantes, termo de que gosto muito. No conjunto, o que prevalece é essa atmosfera, que de certo modo também oferece uma unidade, apesar das diferenças.

A pergunta de Carola Saavedra (“Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror?), em um dos 20 contos reunidos no livro, mostra uma tendência dos contos em partirem da realidade para criarem uma atmosfera de medo. Que elementos “da vida normal” você entende que têm propiciado isso? Esses contos também são retratos dos nossos medos atuais, enquanto sociedade?

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Fico pensando em filmes de terror como “Poltergeist”, da década de 1980: nos lembramos de uma menina que passa a se comunicar com outra dimensão (vamos chamar assim) e acaba sendo tragada por ela. Mas poucas vezes nos recordamos que isso se dá quando sua família passa a viver numa casa construída em cima de um cemitério indígena. Ou seja, é um filme sobrenatural que funciona bem no primeiro plano, mas também é um filme político, que fala da violência da colonização nos Estados Unidos, de uma sociedade que foi construída às custas da aniquilação de outra e dos fantasmas que esse processo arrasta consigo. 

Se pensarmos também no romance “Frankenstein”, escrito por uma mulher inglesa no início do século 19 (Mary Shelley), encontramos tanta riqueza de material, para além de seu valor literário, que podemos desdobrá-lo em inúmeras questões políticas, sociais, existenciais, psíquicas.

 Já o terror na América Latina também tem uma tradição sociopolítica especialmente forte, e se destaca a partir das peculiaridades de sua conjuntura histórica. Ricardo Piglia escreveu que cada conto tem ao menos duas histórias: uma manifesta e outra subterrânea, que corre embaixo dela como um rio.  

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Então entendo que sim, os contos da antologia são sobretudo literários, mas carregam consigo outras questões que refletem nossos medos atuais, de ordem singular e coletiva.

“O dia escuro” está sendo lançado no mesmo mês que o filme “A substância”, um body horror, que também chegou ao Brasil. Apesar de terem temáticas diferentes, ambas as obras aterrorizantes são feitas por mulheres e tratam de corpos femininos. Por que você acha que as mulheres estão assumindo o protagonismo nesse gênero e o que essa perspectiva traz de novo para as obras?

Se “A substância” fosse um conto literário escrito por uma autora brasileira, bem poderia fazer parte dessa antologia sem destoar dela. Existe um movimento de subversão de gêneros até então majoritariamente ocupados por homens, como o “body horror” (horror corporal), que reflete um questionamento ainda maior: se existe algo específico na experiência de ser mulher nesse mundo, também gostaríamos que nossas histórias fossem lidas/vistas de forma “universal”, e não apenas como literatura ou cinema de nicho. 

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