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Sobre roupas e corpos

Duda Flux, personagem de Eduardo Fonseca, que posa em frente à escola onde estudou e aprendeu a dançar e a se pintar (Fotos: Divulgação;  Marcelo Ribeiro)
Duda Flux, personagem de Eduardo Fonseca, que posa em frente à escola onde estudou e aprendeu a dançar e a se pintar
(Fotos: Divulgação; Marcelo Ribeiro)
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Os cílios são longos, o rosto é afinado, os lábios são grandes e coloridos, a sobrancelha é arqueada e extensa, e os olhos, de um raro azul claro. Os cabelos são muitos e longos: loiro, castanho, branco, azul, verde, rosa. Ou então: os cabelos são curtos e negros como a barba e a sobrancelha fartas e os olhos castanhos. Duda é Eduardo. Eduardo, porém, vai muito além de Duda. “Subentende-se que um homem que coloca salto, peruca, roupas femininas e adereços quer ser mulher ou ser tratado como mulher. Isso, necessariamente, não faz parte do conjunto drag queen, que vejo como arte. Não tenho vontade de ser mulher, é um personagem”, esclarece Eduardo Fonseca, cujo corpo serve à drag Duda Flux.

Como gente e ator que é, Eduardo recusa as fórmulas fáceis. A arte não imita a vida, mas permite que as muitas formas de viver sejam repensadas para, então, serem respeitadas. Segundo o escritor, cineasta, ativista LGBT e especialista em cinema LGBT, Stevan Lekitsch, “a diversidade de personagens está derrubando os estereótipos”. “Se compararmos a quantidade de personagens LGBTs nas produções de hoje com a que existia antigamente, vemos um crescimento enorme, incluindo a presença de exposições, debates em programas, sites, entre outros”, pontua.

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Contudo, ainda que casais gays estejam em novela da Globo e o mais popular reality de drag queens (“Ru Paul’s drag race”) esteja sendo veiculado no Multishow, dentre outras “aparições”, falta tratamento menos espetacular e mais naturalizado às questões de gênero. “Personagens como Painho, Capitão Gay, Vera Verão e outros tantos do repertório cultural brasileiro mais servem para aumentar o preconceito do que para dar legitimidade. Espetacularizar é uma forma de silenciar e de dominar”, pondera o antropólogo e fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott.

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Para a mestranda em comunicação, Camille Balestrieri, 21, “não é de hoje que a ‘sapatão’ faz parte do imaginário das pessoas como caricatura. A mulher não feminina existe justamente para que se cristalize a ideia da mulher totalmente feminilizada. A ideia reverberada é que, caso a mulher não siga o modelo hegemônico de feminilidade, ela é necessariamente lésbica ou não será desejada pelos homens, o que é uma grande besteira. É preciso dar liberdade para outras formas de existir no mundo”.

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Em consonância, Stevan Lekitsch, autor do livro “Cine Arco-íris”, destaca a necessidade de uma produção LGBT de qualidade e, consequentemente, maior alcance. “Ainda estamos um pouco atrelados a produtos culturais que misturam sexualidade e erotismo. Precisamos de uma arte que seja rentável, para todos os canais abrirem suas portas. Foi assim que os EUA conquistaram espaço, mostrando o poder do ‘pink money'”, observa, referindo-se ao poder de compra dos consumidores LGBT.

Ensinando a ser gente

Diante da Escola Municipal Olinda de Paula Magalhães, onde cursou todo o ensino fundamental, Eduardo observa as raízes de sua criação. “Foi aqui que aprendi a dançar, a me pintar para fazer saraus, a desenhar. Meus professores me incentivaram na arte”, conta ele. “Tive alguns que não me ensinaram só matemática, geografia, português. Ensinaram-me a ser gente, no sentido literal da palavra. Ensinaram-me a respeitar os colegas negros, os obesos, as meninas masculinizadas, os meninos afeminados.”
Ao crescer, assumiu para si uma verdade que era só sua. Ao dar vida a Duda, assume para o mundo as verdades que não precisam ser só suas. “Sou o Eduardo, filho, irmão, marido do meu companheiro com quem estou há mais de quatro anos. Sou o homem que trabalha, que paga as contas e faz faculdade. E, também, o autor da Duda Flux.”

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Letícia Lanz: “Sou uma construção de mim mesma”

“Não sou homem, nem mulher, nem trans: Sou Letícia Lanz, uma construção de mim mesma. Tal como Foucault, não vou dar munição para ninguém me classificar”, diz, em tom semelhante ao de Eduardo, a psicanalista, pesquisadora e militante de 63 anos, nascida Geraldo, casada há 38 anos com Angela e pai de três filhos. Para ela, as representações midiáticas denunciam que o público “ainda não está preparado para a discussão”. Sendo assim, antes da TV, é preciso conquistar as ruas. E para isso, é lutar ou lutar. Com três graduações no currículo, dois mestrados e três especializações, Letícia construiu em 50 anos a voz de uma vida que sempre quis ter. “Fui obrigada a passar todo esse tempo estudando, reunindo argumentos. O sentimento que tive de inadequação, sendo uma pessoa profundamente adequada, o sentimento de me identificar com o modelo feminino sendo um cara heterossexual, que nunca fez sexo com homens – talvez por nunca ter sido encantada -, vivendo muito bem com uma mulher há quase 40 anos, revela um problema de gênero e não sexual”, diz a dona de cabelos brancos e curtos, maquiagens sempre milimetricamente ajustadas e estilo elegante.

Mudar a norma, para não pecar

As noções de gênero impostas socialmente, segundo Camille Balestieri, reforçam não apenas o machismo como oprimem configurações outras de famílias que não se baseiam em pai, mãe e filhos. “Eu e meu irmão sofremos muito na escola por não termos a família do comercial de margarina”, conta ela, cujo pai morreu um ano após se separar da mãe. “Mais tarde, aprendi a não romantizar a ausência da figura paterna: minha mãe não foi pai e mãe, ela foi só mãe, nossa família é diferente. Não precisamos de homem para ocupar o papel de pai. Nossa mãe nos educou sozinha e muito bem. Se o debate sobre gênero tivesse ocorrido no ambiente escolar, eu não teria passado por constrangimentos”, aponta.

“Montando-se” como “drag king”, Camille instiga o incômodo. “Perturbar essas fronteiras que as pessoas criam para separar o feminino do masculino é extremamente curioso: Para quem elas servem? O que a gente faz com quem não se adapta? Será que elas precisam mesmo existir?”, questiona ela, que, dia a dia, se vê obrigada a entrar em outras guerras. “Primeiramente eu sou uma mulher negra e lésbica, tenho que pensar todos os dias em como me proteger de machismo, racismo e lesbofobia.”

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Autora do livro “O corpo da roupa – A pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero” (ainda no prelo), a mineira radicada em Curitiba (PR) Letícia Lanz defende que o corpo surge do treinamento social, sendo, portanto, um dado cultural. “Não é qualquer corpo que a transexual aspira, mas um corpo idealizado. Até hoje não encontrei nenhuma com o discurso besta de ‘estou no corpo errado’, querendo um corpo de gorda, baixa, sem peito, sem bunda”, analisa. “É preciso usar o gênero como modelo de identificação e não de hierarquização, diferenciação forçada das pessoas, de produção de diferenças artificiais”, assevera. Citando Simone de Beauvoir – “Ninguém nasce mulher, aprende a ser” -, Letícia aponta para os padrões que a própria mídia reproduz na formação de “identidades degradadas” e, com isso, ultrapassadas.

E revela uma conversa que teve em casa, momentos antes de atender a ligação: “Dizia aqui: ‘Sabe o que vou fazer nos próximos meses? Um curso de corte e costura, que foi uma das grandes ambições na minha vida’. Quando eu era criança, olhava para as costureiras e ficava fascinada, não só com as roupas que faziam, mas com a arte. E aquilo era bloqueado para mim como seu eu não tivesse talento. Homem não entende disso. Como não entende? Eu adorava aquilo. Não podia porque era pecado, tinha a norma. Ora, mudem a norma que paro de pecar.”

Ori e ponto

Nem Oriene, nem Orion: Ori. (Foto: Marcelo Ribeiro)

Ao mundo que insiste em forçar a binaridade entre azul e rosa, macho e fêmea, ele e ela, “elx” (que prefere o uso do “x” em vez do artigo feminino ou do masculino) responde vestindo todas as cores e, ao mesmo tempo, nenhuma, com uma blusa que mescla as cores do arco-íris com o fundo branco, incolor. “Não me vejo nesse binarismo ‘só homem’, ‘só mulher’. Acho que é possível ser um pouco dos dois, pode-se mesclar, brincar com o corpo, brincar com a identidade. Não há só duas possibilidades de gênero”, diz “x” estudante de filosofia Ori, que nasceu Oriene e identificou-se durante boa parte da adolescência como Orion. Hoje, identifica-se com o nome neutro, livre de atribuições.

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Se para quem abraça uma das identidades contida na sigla LGBT, o preconceito é cotidiano e cruel, pode ser ainda mais devastador a quem recusa qualquer rótulo de identidade de gênero e orientação sexual. “As instituições em geral, de ensino, serviços, e mesmo a família querem enquadrar o mundo em classificações pré-concebidas. Vou arrumando estratégias para desconstruí-las”, diz “elx”, que, para ir a um casamento “vestida de mulher”, por determinação da família, preferiu “um terninho, alargadores e lápis de olho, no estilo emo”. “Na escola, sempre acabava desmistificando os gêneros por ser acima do peso. As roupas femininas não me serviam, mas as masculinas não faziam de mim um menino”, relembra Ori.

Tendo superado a personalidade quieta dos tempos de escola, Ori ainda é invisível a muitos olhos. “Embora hoje me assuma mais em minha não binaridade, o mundo é muito complicado para quem não é uma coisa ou outra. Hoje em dia aceito-me mais como sou, por ter conhecido outras pessoas como eu. Tento trabalhar isso aos poucos com minha família, para quem sou uma menina que gosta de meninas e recusa vestes femininas. Só que minha identidade vai muito além disso. Por outro lado, não quero criar um clima de discórdia”, desabafa Ori, ainda “obrigadx”, por vezes a existir no mundo ora Oriene, ora Orion.

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