No espaço disponível em casa, as alunas do Marie Taglione Studio passaram a se reunir por meio de chamadas de vídeo, para seguir os estudos de balé. Assistiam às aulas remotas de seus quartos, salas e quintais. Há quase um ano sem pisar nos palcos, onde costumam executar seus passos e coreografias diante do público presencial, precisaram passar por uma série adaptações, por causa da pandemia. Em algum momento, as aulas virtuais ficaram saturadas e, novamente, a capacidade de adaptação do grupo foi exigida. Por meio de montagens em vídeo, elas participaram de quatro festivais: o Festival Internacional de Dança de Fortaleza, Festival Internacional Arte Minas, Festival Fragmentos de Dança (São Paulo) e o Festival Internacional Dançaraxá.
“A gente precisava buscar outros desafios. Os festivais são muito importantes e reconhecidos no meio da dança. Eles abriram oportunidade de inscrições e de a participação ser on-line. Isso trouxe um gás. Acho que é o que sustentou a nossa arte nesse período dentro da dança”, conta uma das diretoras do Studio, Wanessa Alvim, que, ao lado da outra diretora, a irmã, Evelyne Alvim, devem retomar as aulas no início de fevereiro, em busca de novos desafios.
O ensinamento que a jornada interna deixou, segundo ela, foi a necessidade de abrir os horizontes. “Talvez, se não tivéssemos a oportunidade proporcionada por esses festivais e encontros on-line, a gente ainda estivesse em uma esfera um pouco menor. A conectividade nos proporcionou ampliar as nossas fronteiras.”
Para as alunas, além do benefício de ter acesso a algo que ajuda a passar pelo momento de dificuldade, os festivais ajudaram a reforçar o valor da coletividade. “Sempre nos esforçamos para combater a competitividade, que é muito forte na dança. Tudo o que conquistamos nesse momento foi por conta dessa amizade, do nosso companheirismo. Estamos acostumadas a dançar juntas. Aquela coisa: abraça, ri, sempre com muito cuidado. Agora foi muito diferente, difícil, mas foram experiências novas. Conseguimos transmitir a mensagem que precisávamos passar”, conta a aluna Stella Silva Porfírio.
É o contrário do que existia antes, conforme Wanessa, quando havia o sentido de cada grupo fazer o seu, separadamente. Desse modo, outro importante aprendizado foi a aproximação, por outras vias. “Os grupos do país inteiro se fortaleceram, um no outro. Presencialmente, era cada um por si. Veio a pandemia e vimos que ou a gente se unia como classe, ou a gente ia sucumbir. Apesar de ter sido um ano muito difícil, só temos boas lembranças.”
Democratização do acesso
Em 26 anos de trabalho com o balé, Wanessa não tinha lidado com nada semelhante à pandemia. Mas ela pontua que a adaptação foi rápida. “É uma das virtudes das bailarinas”, ela diz. O contexto pandêmico também exigiu adaptação dos festivais. Sem a possibilidade de realizá-los presencialmente, eles ocorreram em ambiente digital. Isso, conforme Wanessa, abriu a oportunidade de tornar o acesso mais democrático.
“Já estivemos presencialmente em grandes festivais, como o Internacional de Joinville e o Internacional de Belo Horizonte. Mas não era todo mundo que tinha o dinheiro para investir na viagem. As edições on-line acabaram com esse problema. Isso possibilitou que vários artistas que ficavam de fora pudessem participar, independente da condição financeira.” A oportunidade de conhecer essas pessoas de todas as partes do país, mesmo que pela tela de um computador, ou celular, conforme destaca a diretora do Studio, é um dos ganhos que se pode sublinhar.
Wanessa exemplifica essa ideia por meio do Festival Internacional de Dança de Fortaleza, no qual duas coreografias do Studio foram premiadas. “Havia uma taxa de inscrição bem acessível. O festival aconteceu em uma transmissão ao vivo, todos os participantes, o público e os juízes assistiram ao mesmo tempo. Foi incrível, não só pela oportunidade de democratização, mas também porque dá uma amplitude maior à dança.”
Falar sobre tudo com sensibilidade e beleza
Em cada um dos festivais que participou, o Studio conseguiu conquistar pelo menos um troféu. Dois deles são frutos do trabalho com o núcleo infantil, que se apresentou com a coreografia “Chegar mais longe”, que fez uma referência às aulas on-line e sobre como manter a leveza no processo de aprendizado. Outro tema fruto de reflexão para o grupo foi o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, que gerou a coreografia “Mar de lama”.
Além delas, o grupo também apresentou “Liberdade”, que aborda a sensação de prisão causada pela quarentena; “Manifesto”, que faz referência ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que luta contra a violência policial contra a população negra, e “Amigas de Kitri, Dom Quixote”.
Segundo Wanessa, quando o Studio vai participar de um festival, uma das preocupações é olhar para as realidades que nos cercam. Em Fortaleza, por exemplo, elas sabiam que precisavam tocar na dor de Brumadinho. “Na semana do evento tinha saído uma notícia de que as coisas em Brumadinho e Mariana ainda estavam paradas e ainda havia a possibilidade de mais uma barreira se romper. Me lembro da reação da curadora, que ficou muito emocionada.”
A arte também é veículo que contribui para quebrar os tabus que persistem. A necessidade do debate sobre as questões raciais, por exemplo, segundo ela, entra em pauta pela voz das próprias alunas, que ajudam a reforçar a importância da representatividade nos palcos. “Se não ficarmos atentos, a dança vai ser excludente, vai ser espaço para poucas pessoas. Elas sempre falam sobre isso. Precisamos e procuramos sempre trazer protagonismo para todos. É importante levantar o tema, tratar assuntos difíceis, profundos, mas com sensibilidade e beleza.”