Com as mãos verdes, ela chega, com seus 12 ou 13 anos e diz: “Não tem sabonete”. O professor, sem pestanejar, carimba: “Gente, vocês estão entendendo o que é estudar em escola pública? Agora pensem nos meninos e meninas iguais a vocês, que querem ter as mesmas conquistas que vocês, e têm que enfrentar dificuldades como esta, falta de sabonete. Temos que nos lembrar disso, é muito importante entender essa história, e defender uma escola pública melhor. ”
Quando se pensa em oficina, logo vem a ideia de um aprendizado técnico, empirista. Mas, por incrível que pareça, a oficina de animação “Animadíneos – Stop motion”, ministrada por Henrique Kopke na Mostra de Cinema de Tiradentes, é permeada por diversos momentos de reflexão como este. “Toda aula é política. A primeira coisa que digo a eles é que na nossa oficina não cabe bullying. Falamos sobre empatia, sobre gênero, sobre o respeito ao trabalho do outro. É fundamental entender isso para se fazer arte, se fazer cinema, sobretudo no momento em que estamos vivendo”, diz Henrique, cineasta de animação formado em belas artes pela UFMG e mestre pelo Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF.
Durante o minicurso, a galerinha entre 12 e 15 anos aprende todo o processo de animação: roteiro, produção, filmagem, edição, e participa ativamente de todas as etapas. “Eles fazem tudo. Eu só oriento, dou o tom da linguagem cinematográfica com eles e faço caber no formato de um curta. A divisão de tarefas também é com eles, só procuro tomar cuidado para que todo mundo participe um pouco de cada processo. ”
Os louros do cinema
O curta-metragem é gravado na técnica de stop motion, que registra as imagens sequencialmente, simulando o movimento de objetos inanimados. Na produção, foram utilizados bonecos de massinha feitos pelos próprios alunos, que interagem em um cenário também confeccionado por eles. O filme será apresentado no encerramento das oficinas da Mostra de Cinema de Tiradentes, no sábado (28), e, para Henrique, este é um momento muito importante do curso.
“Quero que eles vivenciem todos os louros que o cinema traz: fazer o filme, finalizá-lo, apresentá-lo, ser aplaudido, ter depois o link para compartilhar. Eles são a geração para a qual a curtida tem um valor enorme, então, já que sempre compartilham conteúdo, que seja esse, que além de tudo cria uma autoestima, aquele senso de ‘eu que fiz'”, pontua o oficineiro.
Para Ana Martins, de Juiz de Fora, conhecer o universo em que se faz a animação foi uma descoberta sem precedentes. “É o meu gênero favorito de cinema. Não sabia que dava tanto trabalho, mas é muito satisfatório conhecer cada parte do processo, e saber que poderei fazer as minhas próprias animações em casa”, diz ela.
Segundo Henrique, a oficina foi mesmo pensada para fomentar estas produções independentes. “Usamos um software livre de animação do Anima Mundi, webcam, aplicativo de celular e wi-fi. Existe uma ideia equivocada de que animação se faz em um estúdio supertecnológico, no ar-condicionado, mas aqui não. A gente tá usando massinha no calor, ela fica mole, a gente se vira e faz acontecer. Usamos guache, areia, cartolina, se juntar o material todo, dá uns R$ 20. É um filme propositalmente com cara de baixo orçamento, porque jovem nesta idade é duro mesmo, tem que aprender a produzir com o recurso que não tem. ”
Transgaláctica
“Em uma estrada, um disco voador e um carro se chocam, e do carro sai um ET, e da nave uma mulher. Eles vão abrir um zíper e, na verdade, o ET é uma mulher e a mulher é um ET. O fim a gente ainda não resolveu, mas a ideia era brincar com a identidade, eu acho”, diz Analice Vaz, de São João del-Rei, explicando o que será o curta-metragem produzido ao longo da oficina, batizado de “Transgaláctica”. “O nome eu sugeri, mas foi discutido e eles aceitaram. Poderiam ter escolhido outro, cuido para que eles tenham uma experiência realmente autoral”, pontua Henrique.
O cineasta conta que, para ele, mais importante do que aprender um ofício técnico é a possibilidade de formação de um senso crítico. “Tive uma aluna aqui em Tiradentes em 2008 e hoje ela faz pós-graduação em animação, virou a carreira dela. Claro que é incrível saber que seu trabalho dá este tipo de resultado. Mas acho que o mais legal é saber que eles vão passar a ver animações de outra maneira, além da história, que é a camada mais superficial, porque sabem como aquilo é feito”.
Outra prioridade na didática de Henrique é a coletividade, saber trabalhar em grupo, respeitando as diferenças, trabalho que parece já ter dado resultado. “Exibir um filme que a gente fez dá muito orgulho. Dá um alívio também de ver que deu certo, algo que a gente fez junto em cada parte, conversando e chegando a um resultado em que todo mundo colaborou”, diz Jhordannnna Gonçalves, de 12 anos.