
“Somos, os brasileiros, filhos do mais improvável dos casamentos, entre o meu compadre Exu e a Senhora Aparecida”, escreve o professor e historiador carioca Luiz Antônio Simas no seu livro “Pedrinhas miudinhas”. Esta união, entre o catolicismo e as religiões de matrizes africanas, como crê Simas, seria uma prova maior de que o amor funciona. “E digo isso porque chegou o dia de Cosme e Damião. Dia brasileiro dos santos estrangeiros e orixás africanos. Dia de igreja aberta, missa campal, terreiro batendo, criança buscando doce, amigos bebendo saudades e aconchegos. Dia de comer caruru na rua”, descreve em um de seus ensaios sobre esta tradição popular brasileira.
Esse dia festivo, mencionado pelo professor, chega neste final de semana. Comemorado, tanto no dia 26, quanto no dia 27 de setembro, o dia de São Cosme e Damião além de ser um dos símbolos do sincretismo religioso brasileiro, também representa a força e a resistência da cultura popular. Os santos considerados protetores das crianças, da alegria e da diversão levam às ruas as cores e os sabores do Brasil.
Em Juiz de Fora, duas mulheres trabalhadoras buscam manter a tradição. Na tarde deste sábado (27), Bete Baiana, do Awurê, e Ana Daibert, da Oui Uai Franco-mineirices, se juntam no Mercado Municipal de Juiz de Fora para comemorar e distribuir doces gratuitamente a partir das 14h.
Tradição de promessas, graças e doces em tempos de intolerância religiosa
O professor Júlio César Tavares Dias conta que os santos católicos Cosme e Damião, irmãos gêmeos, como conta a tradição, foram médicos que não cobravam pelos seus trabalhos de cura. Em terras brasileiras, foram sincretizados nas religiões de matrizes africanas com o orixá Ibeji, o orixá gêmeo. A devoção aos santos é muito antiga no Brasil, diz o professor, com a primeira igreja em homenagem aos gêmeos sendo construída na cidade de Igarassu, Pernambuco, em 1535, após os portugueses terem vencido os indígenas caetés.
Como explica Dias, na tradição do catolicismo popular, é comum a prática do pagamento de promessas e, para demonstrar gratidão às graças alcançadas pelos santos considerados protetores das crianças, as pessoas distribuem os saquinhos de doces. Dentro dos pacotinhos, são comuns guloseimas como cocada, maria-mole, suspiro, bananada, doce de leite, pipoca doce, pé-de-moleque, doce de abóbora, paçoca e jujubas. “Há aqueles que distribuem por devoção, para manter viva a tradição, mesmo sem nunca terem feito promessa alguma. E há aqueles que distribuem porque gostam de ver a alegria da garotada, sem motivação religiosa”.
Em sua pesquisa de doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Dias pesquisou a devoção e as festividades relacionadas a São Cosme e Damião, escrevendo três livros sobre o assunto, todos publicados pela editora Dialética. “A partir das dinâmicas envolvidas com a distribuição do doce de Cosme e Damião, podemos explicar os próprios movimentos do campo religioso brasileiro, envolvendo os principais atores desse campo, com movimentos de aproximação (sincretismo) e movimentos de tensão (demonização do outro), posto que algumas igrejas neopentecostais realizam campanhas contra essa devoção.”
Doces e Caruru de Cosme e Damião em Juiz de Fora
Culturalmente, a festa de São Cosme e Damião não se resume à distribuição de doces, explica Elisabete Magalhães Rosário, 46 anos, conhecida na cidade como Bete Baiana, dona do restaurante de comida baiana Awurê, localizado no Mercado Municipal de Juiz de Fora. Segundo ela, a comemoração da data tradicional também inclui a refeição do Caruru de Cosme e Damião contando com diversas iguarias ofertadas a todos os orixás.
No prato vai caruru, vatapá, farofa de dendê, milho branco, pipoca, batata doce, inhame, banana da terra, acarajé e abará, explica a cozinheira. “É um prato bem colorido, bem cheiroso e saboroso. Você come e está sendo alimentado espiritualmente e fisicamente. Então, a gente traz essa cultura de que Cosme e Damião curavam não só fisicamente, como espiritualmente”.
Ela conta que quem estiver na Bahia neste mês de setembro vai poder ver as ruas da cidade em festa por conta da comemoração aos santos gêmeos e orixás. Por aqui, ela sente que a recepção a essa festa é diferente, uma vez que a crescente intolerância religiosa às religiões de matrizes africanas tem afastado as pessoas, principalmente as crianças, dessa tradição. “Se a gente deixar, vão matar a nossa cultura. Enquanto eu tiver vida, vou lutar para mostrar essa cultura para as pessoas.”
Com essa vontade, Bete se juntou à Ana Daibert, 32 anos, cozinheira e criadora da Oui Uai Franco-mineirices, café que também tem uma unidade no Mercado Municipal. “Nossa vontade de comemorar o Cosme e Damião e de distribuir saquinhos de doces é um grande apelo para mostrar nossa resistência e que o mercado ainda é vivo. Essa festa é isso: alegria, cor, barulho e agitação”, afirma Ana.
Ela conta que, na sua família, a mãe Eveline Amaral frequentava terreiros de Umbanda e foi responsável por começar a tradição de distribuir saquinhos de doces após fazer uma promessa. Depois, Ana se juntou à ela no trabalho de preparação e de distribuição. “Eu ia muito trabalhar com ela, né? Tenho essa memória de brincar com crianças que eu não conhecia, de conversar com quem não conhecia, de ver outras realidades diferentes da minha”, algo essencial a esta comemoração, acredita.
Ana destaca que esta festividade brasileira é única no mundo todo e deveria ser mais celebrada em nosso país. Porém, muitas vezes, além da intolerância religiosa contra a data, ainda há uma preferência por festas estrangeiras, como o Halloween. “Perdemos muito ao comemorar só aquilo que vem dos outros.” Por isso, entende que essa movimentação é um ato de resistência.
Juntas, Bete e Ana preparam uma festa no Mercado Municipal de Juiz de Fora para a tarde deste sábado, que contará com a distribuição gratuita de saquinhos de doces, bolo e guaraná, além da venda do Caruru de Cosme e Damião no restaurante Awurê. “Essa comemoração, além de ser resistência, de apelo cultural, de apelo ao respeito, também é um apelo político. Porque esse senso de comunhão, de ajudar, de experimentar coisas novas, de respeitar o que é diferente do que você pratica ou acredita está muito ligado à política”, defende Ana Daibert.