Quando lia “Pequena história da música popular: da modinha à canção de protesto” (1974), do crítico, ensaísta e pesquisador José Ramos Tinhorão (1928-2021), o diretor e produtor Jodele Larcher ficou surpreso ao se deparar com a classificação “música de protesto” enquanto gênero musical. “Sou um cara de disco e separo as músicas por gênero”, brinca. A linha cronológica de Tinhorão ordena a “música de protesto” como sucessora da bossa nova. “Tinhorão conclui que a ‘música de protesto’ tinha acabado em 1968 com os festivais. Mas pensei que não. Vivi intensamente os anos 1980.” Jodele, então, organizou um inventário dos cerca de cem anos da “música de protesto” a partir da série “Acorda amor – Canções de rebeldia”. A produção audiovisual estreará na próxima sexta-feira (27) no canal de TV a cabo Music Box Brazil e na plataforma de streaming Box Brazil Play.
Os 13 episódios traduzem em uma linha do tempo, desde o letrista Alberto Ribeiro até nomes contemporâneos como Flávia Paiola e Juba, as variações da “música de protesto”, denominação que, conforme Jodele, mudou ao longo do tempo. “Tinhorão talvez tenha razão ao afirmar que existia todo um contexto para se escrever músicas bem críticas. Depois, tivemos outros contextos.” O idealizador e diretor de “Acorda amor” lembra, por exemplo, da “rebel music” dos anos 1980 com o rock de Brasília, bem como do “samba de participação”. “O termo muda, mas a música nunca deixou de ser reivindicatória.” Ao contrário de Tinhorão, Jodele não a classifica enquanto gênero musical, mas, talvez, literário. “A série é mais ligada aos textos, aos letristas, à escrita. Tanto é que desembocamos nos slams hoje em dia.”
Embora o inventário musical de “Acorda amor” abranja o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985), as críticas também escapavam dos regimes autoritários, afirma Jodele. “A gente não precisa de ditadura para fazer música de protesto. Claro que as ditaduras acirram o espírito crítico, mas a questão ecológica, por exemplo, está desde sempre aí. Mesmo nos governos democráticos há pouca atenção para isso.” O idealizador exemplifica com letras de Chico César e Carlos Rennó, que, inclusive, contribuem para a série nos depoimentos sobre as canções críticas sobre o meio ambiente. Além disso, Jodele relembra temas como descriminalização das drogas, igualdade de gênero e diversidade sexual. “As pautas mudam e rejuvenescem. Tudo isso é para dar um tapa na nossa cara, para acordarmos. Curto e rápido.”
Questionado se é possível estabelecer uma relação mais clara entre as “músicas de protesto” e a esquerda, Jodele pondera. “Não está apenas dentro da esquerda… é claro que a esquerda é mais preocupada (com reivindicações sociais) do que a direita. Mas não existe um casulo, uma caixinha de direita e esquerda. O cara pode compor uma música sem estar exatamente preocupado se é esquerda ou direita, mas apenas em denunciar problemas na periferia.” O diretor relembra que, durante a Ditadura Militar, os artistas foram patrulhados e, inclusive, taxados como alienados ou vinculados a uma esquerda festiva. “Os artistas e as canções são maiores do que categorias ou prateleiras. As canções de protesto mundiais, por exemplo, são maiores do que isso”, conclui Jodele.
Onde está a ‘música de protesto’?
Além de Chico César e Rennó, “Acorda amor” reúne outros 70 depoimentos de músicos, produtores e especialistas em busca de explorar justamente as “músicas de protesto” contemporâneas. Ao mesmo tempo em que remonta às décadas passadas para construir o inventário, a série reúne nomes não convencionais para dar um frescor à produção. Para Jodele, a “música de protesto” hoje está associada sobretudo às reivindicações por respeito à diversidade e por igualdade de gênero, além de preservação do meio ambiente. “O rock, por exemplo, marcado historicamente por homens, foi virando para o lado feminino. O protesto está nas bandas LGBTQIA+. A Charlotte Matou Um Cara, por exemplo, tem a música ‘Punk mascuzinho’, que é impagável, e a Sapataria, que traz o dikecore, é uma banda, como elas mesmas afirmam, de ‘música para sapatão’.”
Conforme Jodele, a busca das mulheres pelo protagonismo na música também é retratada pela série. “A nossa história musical é muito masculina”, pontua. Além da banda Charlotte Matou Um Cara, ele aponta a sambista Manu da Cuíca e o grupo Samba Que Elas Querem, presentes no segundo e terceiro episódios. “No samba, por exemplo, descobrimos o Samba Que Elas Querem, que é um grupo formado apenas por mulheres. Tem ainda a Manu da Cuíca, que assinou o samba ‘História pra ninar gente grande’ (da Mangueira campeã em 2019).” A série ainda reúne as juiz-foranas Laura Januzzi e Laura Conceição, convidadas para o episódio sobre meio ambiente, o décimo da série. Ambas fazem uma releitura da música “Sobradinho”, de Sá & Guarabyra, como crítica ao rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho.
Pocket shows
As releituras como a de Laura Januzzi e Laura Conceição para “Sobradinho” foram a maneira encontrada pelo idealizador para materializar a relação entre os artistas das novas gerações com aqueles que construíram a história das “músicas de protesto”. “Acorda amor” traz 26 pocket shows exclusivos distribuídos entre os 13 episódios, como a interpretação de “Pedreiro Waldemar”, originalmente cantada por Blecaute, na voz de Marcelo Pretto e Lincoln Antonio; “Opinião”, de Zé Ketti, por Dani Moraes; “Maria Moita”, pelo duo Parde2; “BR3”, com Eloísa e Estela Paixão; e “Dança do Patinho”, regravada por BNegão. “As participações foram pensadas de maneira muito orgânica”, pontua Jodele. “Tudo foi surgindo durante a pesquisa. Fomos produzindo e esperando pelas pessoas que queríamos muito que participassem. Quisemos fugir do convencional, apelar para algo mais contracultural.” Financiada pela Lei do Audiovisual, “Acorda amor – Canções de rebeldia” tem a produção executiva de Lucilia Coelho.