Isa nasceu rápido, no prazo de um filme. Nara Vidal, escritora nascida na vizinha Guarani e radicada na Inglaterra, colunista da Tribuna aos domingos, colocou os dois filhos para assistir a um filme e foi escrever. Era 2013 quando colocou no papel a história de “Arco-íris em branco e preto”. Nunca antes (nem depois) escreveu uma trama tão rápido. Depois de reler, pensou em oferecer para alguma editora, mas não conhecia nenhuma. “Além disso, fui tomada por uma sensação impressionante de dúvida sobre a qualidade da história, mas ainda assim queria ver no que ia dar”, recorda-se ela, que criou uma conta de e-mail assinando Clara Jones. “Fiquei com medo de assinar com meu nome e, se o livro fosse horrível, eu ficasse marcada: Nara Vidal, a que que escreveu aquela péssima história”, conta, por e-mail.
‘Missão iniciada’
Em sofrimento, Isa é acolhida pela amiga Bia, abrindo brechas para que a narrativa aborde a importância da sororidade, dentre muito outros temas complexos, encarados com a leveza de uma garota cheia de bom-humor. “A Isa me mostra que dá para ter interesses além dos previsíveis e, acima de tudo, dá para ter amor-próprio mesmo que as pessoas ao nosso entorno insistam em pedir por mudanças, ainda que essas mesmas pessoas sejam tão imperfeitas. A diferença é que a Isa está em paz com suas imperfeições”, observa Nara, assegurando seu desejo de acompanhar o crescimento da personagem. “A próxima proposta deve abordar temas como sexo, drogas, machismo, entre outros. Mas sempre com o meu próprio comprometimento em nunca ser tentada a utilizar a literatura como panfleto. Acho isso muito ruim, especialmente em livros para crianças e jovens. É como se subestimássemos a capacidade de discernimento dos leitores e julgássemos que, pela pouca idade, não tenham sensibilidade e recursos para construírem a própria opinião.”
Há uma ideia de “missão a ser cumprida” pela literatura infanto-juvenil?, pergunto. Nara é enfática: “Missão cumprida não, mas se a leitura servir para proporcionar alguma discussão, aí, sim, missão iniciada.” “As cores do arco-íris”, em suas 144 páginas, ilustradas por Flávio Fargas, desperta perguntas sem a pretensão de respondê-las, mas na certeza de que inaugura um debate. “Acho que sempre que há um processo de criação, acabamos por produzir algo que nasce a partir de quem somos. Assim como na minha vida adulta o machismo e a religião pairam pesados no ar, na adolescência é comum sermos atingidos por bullying, baixa autoestima, pressão dos próprios amigos para gerar um senso de pertencimento”, defende a escritora.
A complexidade do arco-íris
Referência à magia e oposição à vida bicolor (de preto e branco, apenas), o arco-íris do livro reforça o discurso que a vida, de Isa e de todo mundo, é preenchida por inúmeros tons. Outra alusão, à orientação sexual, deve ser contemplada no terceiro livro da série, garante Nara Vidal. “Há uma personagem que vai se identificar como gay na próxima história. Eis um assunto que me toca profundamente e pelo qual eu brigo. Brigo e levanto a bandeira até as últimas consequências pelo direito ao respeito de todo mundo ser livre para ser quem é. Para todo mundo ter o direito de viver uma vida digna e tranquila, sem ameaças e humilhações. A homofobia é uma das piores pragas na sociedade”, critica a autora.
Secundários, muitos dos personagens de “As cores do arco-íris” atuam nesse sentido de descortinar questões mais profundas e de conformar as múltiplas faces do ser humano. A mãe, por exemplo, é hilária e também cruel ao criticar frequentemente Isa em suas imperfeições. Manu, a tia de Isa, é engraçada e rebelde, aquela tia que compra para a sobrinha óleos chineses para banho num camelô carioca. Na geografia da adolescente de cabelos indomáveis, espinhas no rosto, óculos de lentes grossas e peso acima do ideal, cabem a aula de inglês e a de pintura em tecidos (obrigada pela mãe). Há muita cor. E um extenso cardápio para boas conversas, tudo posto na naturalidade do cotidiano trivial.
“Escrevo sem pensar muito em quem vai ler. Ou seja, não dá para escrever imaginando o leitor, porque esse leitor pode ser qualquer um, com pontos de vista de todo jeito. Acho que escrever ficção só funciona com essa completa liberdade”, comenta Nara, autora do denso “Sorte”, terceiro lugar no Prêmio Oceanos em 2019, um das maiores distinções literárias da língua portuguesa. “Mas se existe uma única preocupação nesse processo é o de não me repetir e o de tentar narrar só o que realmente me importa e me interessa. Se alguma coisa me incomoda, me tira o sono, me faz falar sozinha é porque aquilo, em algum momento, vai virar uma narrativa. Pode ser um romance, um conto, um livro para crianças e jovens”, finaliza.