“Todo mundo acha que o intelectual é aquele cara que está publicando livro, escrevendo poesia, fazendo cinema. Mas não é só isso. Você pode condicionar situações várias apenas com a presença sua”, diz o homem enrolado num cachecol verde, vestido numa camisa de lã em branco, cinza e vermelho, com um cobertor xadrez de verde, branco e azul sobre as pernas e os pés. “Um amigo dizia: Mamute, você é um intelectual orgânico, porque não se prende a um grupo ou a uma escola”, conta Luis César Nobeli, aos 59 anos, grande parte deles dedicada a uma quase onipresença em eventos culturais e acadêmicos de Juiz de Fora.
Diferentemente do animal com o qual foi apelidado, Luis não entrou em extinção. Só passou uns apertos. Teve os cabelos, já brancos, cortados. A barba, sempre muito longa, se foi. Restaram os olhos castanhos, a erudição da fala e o entusiasmo. Está distante e está bem. “O negócio foi feio, brabo. Mas ter informação possivelmente me salvou. Foi um quadro de grande adversidade. Tive um AVC, depois um infarto, pneumonia, trombose, coronária entupida, hemorragia de quase 24 horas e tem o etc também”, ri ele.
“Mantenho na internet um blog de neurociências. Umas semanas antes de passar mal tratei da prevenção do AVC. Como diz Carl Gustav Jung, foi uma associação de sincronicidades. Estava no Museu (Mariano Procópio), na segunda-feira de carnaval. O braço começou a paralisar, mas achava que fosse reflexo de um acidente há cinco anos, quando um carro me pegou na Avenida Brasil. Pensei, então, em fazer um teste de marcha e, de um banco a outro, caí. Vieram populares me acudir, e eu tive a certeza: estou fazendo um AVC. A boca entortando era um sinal evidente. A fonoaudióloga já deu uma boa consertada”, conta o homem, que seguiu para o HPS, depois foi transferido para o João Felício, passou pela Maternidade Therezinha de Jesus, até se fixar no Hospital Ana Nery, no Grama.
O pré-operatório
No périplo entre um hospital e outro, sumiram os documentos, já refeitos, a contar de um homem com raízes. O avô era um gráfico respeitado, que veio para Juiz de Fora com o intuito de fundar uma indústria gráfica. O pai cresceu no lugar e aprendeu toda a técnica para abrir sua própria empresa no Centro. A mãe fazia os trabalhos de casa. “Naquela época, a mulher não tinha muitas opções. Era grande a opressão. Mas ela teve um mérito: fui fazer psicologia por causa dela, por conta da atenção dela”, comenta Luis, que entre 1979 e 1984, sem irmãos, perdeu as duas referências familiares imediatas. “Sou sozinho desde aquela época. Já tive namoradas, já morei com uma delas. Sartre dizia: você é um ser sozinho do mundo, foi lançado ao mundo. Vamos ser sempre assim, não há mecanismos contra a solidão, ainda que haja uma parentada ou muitos amigos como tenho”, sorri ele, cuja casa, na antiga rua do Carmelo, servia-lhe apenas para o sono.
A sala cirúrgica
“Quando encontrar São Pedro, a primeira coisa que vou perguntar é: onde fica a internet?!”, brinca Luis, que até a doença lhe subtrair a locomoção – já está andando na barra – ia para a universidade, todos os dias, a pé, para se atualizar nos computadores da instituição. “Subia pelo Dom Bosco e descia pelo São Pedro. Porque segurei um rol de doenças? Porque estava em forma. Não é um dia, é mais de uma década. Li que, numa pesquisa na Universidade de Harvard, uma turma concluiu que a atividade física fixa os dados, facilita a aprendizagem das pessoas. Já sabia há muito tempo.” A atividade física, portanto, servia-lhe à moeda que lhe é mais cara: o intelecto. Os primeiros estudos foram na Academia, de onde saiu psicoterapeuta e foi se pós-graduar em ciência da educação. Depois voltou-se para os cursos da UFJF. “Entrei num mestrado em economia sem ser economista e terminei. Como estava com tempo disponível, lia que o mundo ia ser digital, então fui fazer disciplinas (graduação) de matemática voltada para a computação. Não era um aluno regular. Encantei-me pela internet. É de um refinamento científico inacreditável”, elogia ele, que também fez disciplinas no mestrado em medicina. “Fui mordido pela mosca azul do conhecimento.”
Dias convalescentes
Testemunha da cultura juiz-forana nas últimas décadas, Mamute… Porque Mamute? “Surgiu de gurizada. Quando cheguei na Academia, ainda criança, pegou”, conta, para logo emendar noutra história, aos risos: “Teve uma vez, quando ia acontecer a primeira eleição para reitor, me lançaram”. Nesse momento, uma mulher lhe interrompe com um folheto religioso. “Uma mensagem de Deus”, ela diz. Ele responde: “Estou assim com ele (faz um gesto com os dedos, denotando proximidade). Também, pudera, eu já estava nas portas da eternidade”. Ficou para se fazer mais presente. Da cena underground aos círculos intelectualizados. “O segredo dos vernissages: você vai em uma e, automaticamente, fica sabendo da que ainda vai ter”, explica ele, saudoso de sua agenda. “O dia em que tive vontade, esperei por um amigo que tivesse carro. Foi o lançamento do Ismair, que escreveu sobre o Mello Reis. Escutei na rádio, mas não fui”, diz. Ainda sem previsão de alta, Mamute já sabe dos dias futuros. “Vou voltar a fazer tudo o que estava fazendo. Nos vernissages posso ir, mas não posso beber.” Você bebia? “Tomava o vinho que serviam.” Fumava? “Nunca fumei. Não tenho pequenos vícios, tenho grandes vícios.”