Os mais antigos – este repórter incluso – com certeza se lembram da frase que acompanhava as chamadas da programação dos cinemas do grupo Severiano Ribeiro: “Cinema é a melhor diversão”. A despeito de que hoje a sétima arte ainda permanece como uma das melhores formas de se passar o tempo, ir ao cinema, antigamente, era mais do que comprar ingresso, pipoca e colocar os óculos 3D: era procurar nos jornais a programação da semana, convidar a namorada ou pretendente, vestir a melhor roupa – incluindo terno e gravata para os homens nos anos 50 e 60 – e enfrentar as filas nos cinemas que ficavam nas principais vias da região central ou mesmo nos bairros, ver gente, encontrar os amigos e conversar sobre as produções nos dias seguintes, e aguardar pela próxima sessão. Era uma época em que televisão era para poucos, e internet sequer existia.
É com o objetivo de relembrar essas histórias que se passaram em Juiz de Fora em cinemas como o Central, Palace, Glória, Popular e São Luiz, entre tantos outros, que o grupo de pesquisa Comunicação, Cidade e Memória (Comcime), da UFJF, iniciou neste mês a websérie “Cinema de rua de Juiz de Fora”, integrante do projeto “Cidade e memória: A construção do imaginário urbano pela narrativa audiovisual”. Dividida em episódios, a iniciativa terá novos vídeos disponibilizados quinzenalmente na internet em seu canal no YouTube (Cinemas de Rua de Juiz de Fora). O próximo, que deve ser disponibilizado na segunda-feira, terá como tema o Cinearte Palace. Os episódios fazem parte dos três capítulos em que foi dividida a websérie: “Cinemas da Rua Halfeld”, “Outros cinemas do centro da cidade” e “Cinemas de bairro”, sempre permeados por depoimentos de antigos frequentadores e ex-funcionários.
Coordenadora do Comcime, a professora Christina Musse integra o grupo de pesquisa desde sua criação, há cerca de quatro anos, e que este ano foi escolhido como foco o estudo dos cinemas de rua de Juiz de Fora, atualmente reduzido à permanência do Cinearte Palace. “Fiquei sensibilizada por essa questão, pois tive minha juventude marcada por essa atividade, esse prazer de ir ao cinema, que geralmente era de rua. Considero importante estudar a situação dos cinemas de rua da cidade, onde ficavam, no que se transformaram, e as histórias das pessoas que frequentavam esses locais e quem trabalhava lá”, explica. “Entender como se formavam essas redes de sociabilidade num lugar localizado no centro da cidade e que promovia essas histórias, encontros, criando sociabilidades de fato, incluindo horários que frequentavam, as roupas que usavam e o que deflagrava novas subjetividades, novas formas de ver o mundo. Você não tinha a internet, poucos tinham televisão, então o cinema era o local em que se sonhava a vida de outras pessoas e se conhecia novas realidades.”
Ainda de acordo com Christina, a fase anterior do projeto, realizada no ano passado, buscou mapear as salas de exibição que havia na cidade, incluindo não apenas a região central, mas também os bairros, como São Mateus e Benfica, e ex-funcionários, bibliografia a respeito, plantas dos antigos cinemas, levantamento iconográfico (fotos, filmagens) e pesquisas em jornais na Biblioteca Municipal Murilo Mendes. “Tentamos localizar os cinemas de 1950 até 2015. A programação deles, as sessões por semana, origens dos filmes, gêneros mais exibidos. É um levantamento quantitativo, ainda faremos uns retoques para divulgar.” Mais para frente, Christina não descarta pesquisar também os locais que não eram cinemas mas recebiam exibições. É o caso do Centro de Estudos Cinematográficos de Juiz de Fora (CEC), localizado na Galeria Pio X e que funcionou de 1957 até o final da década de 1970.
Memória audiovisual e afetiva
A ideia da websérie foi dada pela estudante Valéria Fabri, do curso de comunicação social da UFJF, argumentando que seria uma ferramenta para as pessoas se interessarem pelo objeto da pesquisa do grupo. Ela ficou responsável pela seleção dos entrevistados, além de realizar as entrevistas, filmagens e edição, sob a supervisão de Christina Musse. “Achei interessante fazer um projeto audiovisual que fosse parecido com o cinema. Sugeri a websérie porque poderia ser mais abrangente. Porém, ao invés de um documentário longo, propus produzir episódios curtos para facilitar o acesso”, conta.
“É uma experiência nova, que nos permite mostrar o que aconteceu com os cinemas, as memórias que as pessoas têm desse lugares. Temos a preocupação de trabalhar com filmes de arquivo, levantar acervos particulares que tenham registrado essas salas em funcionamento, como uma memória visual da cidade, mostrando como se deu essa ocupação. Juiz de Fora tem uma memória cinematográfica e audiovisual intensa, foi a primeira cidade do país a ter uma exibição de cinema, em 1897”, acrescenta a professora Christina, para quem é uma obrigação do pesquisador compartilhar aquilo que faz.
Ainda que pareça um passado distante, é possível encontrar quem tenha vivido essa época e guarde muitas lembranças de tudo que passou. São pessoas que, de acordo com Christina, estão na faixa dos 60 a 90 anos, incluindo desde espectadores a ex-funcionários, até mesmo menores de idade numa era em que as leis trabalhistas eram mais flexíveis – ou menos fiscalizadas. “É muito curioso, porque se você for à Rua Halfeld à tarde e se encontrar com pessoas de cabelos brancos, eles vão contar essas histórias”, diz a professora.
“Uma coisa legal que percebi nessas entrevistas foi o amor que elas tinham por esse ritual de ir ao cinema, e como isso se refletia na forma com que as pessoas se divertiam, interagiam. Acaba sendo um resgate da cidade e da sua história cultural”, afirma Valéria, para quem um dos desafios com o projeto é separar o que vai entrar nos vídeos. A ideia, então, é colocar futuramente no site da iniciativa (www.cinemaderuajf.wix.com/cine) versões aprofundadas das entrevistas e das histórias dos cinemas.
Cinema, um evento social
Christina Musse lembra de como o cinema era importante e influente na vida social da cidade, com as salas de exibição sendo inauguradas com pompa pelos prefeitos de então, cenário bem diferente dos anos de decadência – em que muitos chegaram a sobreviver exibindo filmes pornográficos – e da ascensão das salas em centros comerciais. “Eu sou do Rio de Janeiro, mas frequentei muitas vezes os cinemas de Juiz de Fora quando passava finais de semana e férias na cidade. Tinha o hábito de ir com meus primos ao Palace e ao Excelsior quando era adolescente. Eram muitos lançamentos, mas também filmes de arte, europeus. Mesmo com todas as mudanças, continuo achando um dos melhores programas do mundo ir ao cinema”, recorda.