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‘A ameaça faz bem para os intelectuais’, afirma Christian Dunker

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Se há algumas décadas prevalecia o conceito de democracia como uso livre da palavra, justiça e igualdade, segundo Christian Dunker, na contemporaneidade o termo expandiu-se. “Há democracia quanto reconhecemos que nem toda lei já está escrita e decidimos, portanto, o caminho que devemos tomar”, aponta o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo, ressaltando que a “história da democracia é a história da inclusão de mais sujeitos”. Em seu ensaio para o livro “Democracia em risco? – 22 ensaios sobre o Brasil hoje” (Companhia das Letras), o pesquisador analisa quem são os sujeitos do país do presente e como reage diante da potência dos meios digitais. Primeira obra publicada sobre o novo governo, com reflexões à quente, a coletânea foi lançada no primeiro dia do ano, quando tomava posse o novo presidente da República. No último dia 21 chegou às livrarias. Dentre os 24 autores estão nomes como os de André Singer, Boris Fausto, Heloisa Starling, João Moreira Salles e Monica de Bolle.

Um dos responsáveis pela renovação das ideias da filosofia social de Lacan, Dunker aponta para uma nova performance do sujeito na sociedade brasileira atual. Tangenciando o espectro político, seu ensaio investiga como age o coletivo. E observando o horizonte Dunker anuncia: “Excluir ou incluir depende de como negociamos nossa condição de indivíduos diante de formações de grupo, de classe e de massa”. Vencedor do Jabuti de melhor livro em psicologia e psicanálise de 2012, com “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica” (Editora Annablume), e finalista em 2015, com “Mal-estar, sofrimento e sintoma” (Boitempo), o co-fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP e colaborador de importantes veículos da imprensa nacional observa como alcançamos a experiência de sofrimento própria da vida contemporânea. Em seu mais recente livro, “Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano” (Ubu Editora), também persegue a vivência do sofrimento, mas pelo viés das relações de amor. Em conversa com a Tribuna, por telefone, o intelectual reflete sobre o atual cenário e, equilibrando seu discurso entre a academia e a clínica, é enfático: “Temos um aumento do sofrimento social”.

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Segundo o psicanalista Christian Dunker, o que está em jogo hoje no Brasil é a partilha dos bens econômicos, sociais e culturais para todos ou para alguns apenas. (Foto: Divulgação)

Tribuna de Minas – Identifica certo pessimismo nos discursos dos brasileiros?
Christian Dunker – Percebo, principalmente quando aconteceu a eleição, quando foram sendo anunciados os ministros, quando ficou mais clara e patente a influência do Olavo de Carvalho, e quando percebemos que por trás da inteligência do novo governo encontramos pessoas que não têm o reconhecimento pleno dos pares, tanto na educação quanto na cultura e ciência. Isso foi chocante, porque imaginamos que todos os setores do governo, institucionais, tenham um espectro que vá das posições mais conservadoras às mais liberais, mas não esperamos que pessoas que estão fora do jogo sejam chamadas para ocupar cargos tão importantes. O pessimismo é uma percepção que estava muito forte antes do início do novo governo. Quando, de fato, vimos a coisa em funcionamento, houve uma mudança da opinião pública, no ambiente da internet, com apoiadores sendo atacados. O humor, o ânimo das pessoas passou da decepção e do pessimismo a uma confusão, que é o que se anuncia.

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“O humor, o ânimo das pessoas passou da decepção e do pessimismo a uma confusão, que é o que se anuncia.”

“Democracia em risco?” foi a primeira coletânea de ensaios a discutir o novo governo. Qual é a sua reflexão sobre o agora do Brasil?
O livro “Democracia em risco?” tenta captar um conjunto de áreas, com especialistas de diferentes origens, intelectuais de diferentes tipos, fazendo um retrato, um raio-x, bem sagital, sem grandes análises de dados, mas com impressões. No meu caso me restringi a reescrever um texto clássico do Freud chamado “Psicologia das massas e a análise do eu”, no qual ele lança sua teoria sobre funcionamento de grupos, de coletivos e faz uma série de descrições de como isso acontece, desenvolvendo uma teoria importante da psicanálise que é a da identificação. Tento reescrever esse trabalho mostrando que temos um novo tipo de agenciamento das massas, que são as massas digitais. Elas têm características um pouco diferentes das descritas pelo Freud, mas acompanha o que ele já havia colocado. Esse funcionamento das massas digitais não se restringe a quem usa a internet ou as redes sociais. É algo que se alastra por nosso meio social, onde há funções de anonimato, de agressividade e ódio, de criação de inimigos, de surdez seletiva, da impossibilidade de ouvir o outro, que entram capilarmente nas comunidades mais simples, que são as famílias. Temos uma coisa curiosa: a volta de um tipo muito antigo de forma de poder baseada na família.

E você também responde sobre a democracia em risco.
Não acredito que vá haver fechamento do congresso, tanques nas ruas, suspensão de eleições e uma desmontagem das instituições. Realmente não acredito isso vá acontecer. Mas acredito que passaremos de uma democracia que até aqui teve um perfil de inclusão, colocando mais pessoas na conversa e incluindo mais gente na condição de gente, para uma democracia exclusivista, que vai mostrar que funciona melhor porque funciona para menos gente. Podem fazer isso pegando recursos que estavam sendo distribuídos para muitas pessoas e concentrando em áreas de excelência e de favorecimento. É provável, então, que tenhamos a democracia em risco nesse nível, que é uma mutação da democracia que vem sendo buscada no Brasil desde a Constituição de 1988.

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“Acredito que passaremos de uma democracia que até aqui teve um perfil de inclusão, colocando mais pessoas na conversa e incluindo mais gente na condição de gente, para uma democracia exclusivista, que vai mostrar que funciona melhor porque funciona para menos gente.”

Como atua o imaginário coletivo do brasileiro no presente?
A maneira mais simples de descrever o imaginário coletivo é pensando a partir de uma forma de organização social que se estabeleceu no Brasil nos anos 1970: o condomínio. Ele é uma zona de aplicação restrita da lei, para poucos, com uma figura que não é um político, e sim o síndico, com altos dispositivos de segurança e segregação. Ao invés de conviver com a diferença, trocamos isso e o trabalho que o convívio com a diferença dá, por uma vida entre muros, artificial. Não (estando) claro o alinhamento com o (Donald) Trump, temos uma versão tupiniquim disso sendo prometida pelo Bolsonaro, que no fundo representa a retomada da antiga forma de poder e de vida dos condomínios. Teremos a volta dos condomínios na saúde mental, que são as comunidades terapêuticas, nas quais o estado subvenciona organizações que montam pequenos parques onde as pessoas são disciplinadas ao invés de serem tratadas no convívio com os outros e na circulação das cidades. Também teremos um reforço nos condomínios presidiários, com dinheiro para a construção de novos espaços e consequentemente aumento da população carcerária no país. Ainda, a ideia primeira, de armar a população, simboliza o condomínio que não tem só os muros, como também as armas para se defender do ataque de estrangeiros, inimigos, pessoas que não são como “nós”. Versões dessa lógica do condomínio devem começar a aparecer, na medida em que são expressões de uma democracia mais fechada, restrita, para quem pode.

Nesse contexto, ainda é válida a análise de que os meios digitais propiciam a democratização e a horizontalização da sociedade?
Minha leitura é de que o retrocesso acontece por vários caminhos, inclusive pelo digital. No caminho digital tivemos uma ampliação muito grande da arena política e do número de atores. Pessoas que nunca tinham opinado, que não tinham leitura política, nem formação política, em função da ausência de educação própria para isso, começaram a participar. Isso é democracia. E veio junto com a ascensão social, das milhões de pessoas que passaram da miséria para a pobreza, da pobreza para a classe média, e assim por diante. Tem mais gente na conversa e esse não é o problema. A questão é que as mediações necessárias para organizarmos uma conversa democrática com um número tão abruptamente maior de pessoas fracassaram. Não há democracia quando só se põe as pessoas juntas no espaço público. Quando se faz isso e não existem os meios para que isso aconteça, o mais provável é que faça emergir as tiranias. O que vimos com as instâncias que deveriam ter tornado esse espaço mais extenso da democracia institucionalmente mais democrático? A imprensa se evadiu, porque seu modelo de negócio não suportou esse novo ambiente. Ainda que no começo tivéssemos uma participação um pouco maior, lentamente as pessoas foram retirando suas colunas, foram saindo do YouTube, deixando de participar do debate. Isso é péssimo, porque significa dizer que entregaram a conversa para quem quisesse se ocupar disso. Num outro sentido, o judiciário fez a mesma coisa. E, assumindo minha parcela particular de responsabilidade nessa conversa, os intelectuais e os artistas viram nesse espaço, depois de determinado ponto, um movimento hostil e que não valia a conversa. Então, saímos do lugar onde se organizava uma nova circulação de palavras e uma nova articulação de antagonismos e oposições. O que sobrou foram posições muito engajadas, que tentavam angariar mais adeptos. Não é que o digital trouxe por si só o colapso. É que a falta de mediadores simbólicos de todos os tipos fez com que a democracia não evoluísse tão bem.

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“Saímos do lugar onde se organizava uma nova circulação de palavras e uma nova articulação de antagonismos e oposições. O que sobrou foram posições muito engajadas, que tentavam angariar mais adeptos. Não é que o digital trouxe por si só o colapso. É que a falta de mediadores simbólicos de todos os tipos fez com que a democracia não evoluísse tão bem.”

Qual o lugar da intelectualidade e do pensamento nos dias de hoje?
Por um lado há uma ameaça nova e inesperada. Há cortes e colocações inconsequentes e bizarras como a de Paulo Freire (pedagogo) se tornar inimigo de estado. Isso é algo que nem a ditadura militar conseguiu fazer. Há um desprezo de anos e anos pelas pesquisas científicas e avanços conquistados, hoje ameaçados. Mas a ameaça faz bem para os intelectuais, porque recoloca na conversa pública o debate intelectual que estava em estado de domesticação, apesar da crítica de que as universidades estavam mais à esquerda e sem grandes expressões à direita. Os intelectuais estavam profissionalizados, marcando pontos nos currículos, indo a congressos, sendo mais funcionários e afastados do debate público. Essa situação atual força que voltemos para o debate público, que demos razões, enfrentemos imposturas intelectuais.

Como o atual momento impacta a subjetividade dos brasileiros?
Clinicamente falando, percebo alterações na escolha de parceiros amorosos – quantos namoros não escutei se dissolverem quando alguém dizia em quem votaria! -, o que mostra um nível de capilarização e importância da política na vida cotidiana e íntima que nunca tivemos. De fato, vi dissensões entre pais e filhos, pessoas que se gostavam, e aconteceu não só na classe média, mas de forma generalizada. Estamos de ressaca, há uma maneira nova de nos comportarmos em público. Ainda não sabemos como é, mas tomamos mais cuidado com as palavras, com as declarações. Há assuntos a serem enfrentados de outras maneiras e, principalmente, há novas formas de sofrimentos que estão emergindo e ainda não demos muita atenção, como os sofrimentos por déficit de intimidade, que gera aumento da sensação de solidão. Hoje não podemos conversar com tantas pessoas como antes. Posso estar com elas, mas a conversa é mais vigiada. Temos um aumento da sensação de insegurança subjetiva, que afeta a adolescência, acréscimo de ansiedade, de depressão, aumento dos suicídios. Demora uma temporada até percebermos o impacto, mas muito provavelmente temos um aumento do sofrimento social.

“Temos um aumento da sensação de insegurança subjetiva, que afeta a adolescência, acréscimo de ansiedade, de depressão, aumento dos suicídios. Demora uma temporada até percebermos o impacto, mas muito provavelmente temos um aumento do sofrimento social.”

 

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