Conhecida pela variedade de iguarias culinárias e pela ampla oferta de restaurantes, Juiz de Fora tem ganhado destaque por um novo fenômeno: a expansão dos concursos e festivais gastronômicos. Dos botecos às cafeterias, a cidade reúne opções e categorias que atendem a diferentes gostos e bolsos.
De acordo com o secretário de Turismo da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), Eduardo Crochet, os eventos gastronômicos têm papel estratégico para a economia local, com impacto direto no turismo e na cultura. Esses festivais são vistos como oportunidades de divulgação e valorização dos empreendimentos de alimentação e culinária da cidade, tanto para visitantes quanto para moradores, contribuindo para o fortalecimento de uma identidade gastronômica própria do município.
A pasta municipal acrescenta que parte desses festivais já conta com leis autorizativas e está em processo de inclusão no calendário oficial do município, enquanto outros, realizados pela primeira vez em 2025 ou em anos anteriores, continuam sendo monitorados para que se consolidem de forma permanente. A Secretaria também destaca o sucesso de iguarias ligadas à identidade local: Juiz de Fora vem se projetando com produtos que se tornaram referência regional, como o torresmo, símbolo da cultura de boteco mineira, e a cerveja artesanal, impulsionada por iniciativas como o programa Praça Cervejeira.
Roteiro de boteco
Entre os eventos que estão movimentando o calendário local está o Festival Botecar, que reúne 23 bares com tira-gostos inéditos preparados exclusivamente para a ocasião. Inspirada no artesanato mineiro, a edição adota o tema “Feito à mão, feito com o coração”.
O festival combina votação popular e avaliação técnica. Segundo o coordenador, Wallace Mattos, em entrevista ao Tribuna no ar, jurados analisam critérios como sabor, temperatura da bebida, ambiente e atendimento. As notas do júri e do público têm peso igual, ajustadas por um coeficiente que equilibra diferenças entre bares de portes distintos; um esforço para que tradição e novidade caminhem lado a lado com justiça.
Com preço acordado entre os participantes, os tira-gostos, que servem duas pessoas, variam entre R$ 30 e R$ 50.
Wallace explica que a curadoria foi realizada por ele e pela jornalista e professora do Instituto de Gastronomia Aplicada Juliana Duarte. A ideia do evento vem de Belo Horizonte, onde o Botecar é realizado desde 2019, e agora chega a Juiz de Fora para valorizar a cena local.
“Fizemos questão de trazer bares que representam a cidade e lugares tradicionais, como o Bar do Abude, em São Mateus. Também incluímos bares novos, como o In City Bar, em São Pedro”, destaca.
A proposta temática inspira criações que dialogam com referências mineiras. No Bar do Abude, o prato ganha companhia das peças em bambu produzidas pela artesã juiz-forana Dani, reforçando o encontro entre gastronomia e manualidade. Outro concorrente homenageia Carlos Bracher – artista símbolo da cidade na pintura, escultura e literatura – enquanto o Santé recria, em forma de petisco, os telhados clássicos de Minas Gerais, marcados pelo padrão “beira-tribeira”.
Para orientar a criação dos pratos, os estabelecimentos receberam um descritivo detalhado que apresentava o conceito do festival, incluindo notas de Antônio Lúcio, idealizador do Botecar em Belo Horizonte.
O festival começou em 11 de novembro e segue até 14 de dezembro. Os bares participantes podem ser conferidos no Instagram do concurso.
Cerveja e cozinha em sintonia
Harmonizando boa comida com cervejas artesanais, o Festival Combina reforça o valor da cevada na mesa mineira e confirma o prestígio da produção cervejeira juiz-forana. Com 20 bares participantes, o concurso propõe uma experiência que integra gastronomia, cultura cervejeira e capacitação profissional.
Segundo o presidente da Associação das Cervejarias (Unicerva), Alexandre Vaz, também em entrevista ao Tribuna no ar, a proposta vai além da disputa entre estabelecimentos. “A ideia é trazer um concurso gastronômico aliado a treinamentos empresariais. Há todo um trabalho de consultoria e palestras para desenvolver o setor – desde orientar o garçom a falar sobre a cerveja até fortalecer a percepção do que temos na cidade e dar acesso a isso. É muito importante.”
A capacitação promovida pela Unicerva tem o objetivo de qualificar toda a cadeia: equipes de atendimento, gestores, cozinhas e produtores locais.
A votação combina as notas do público e do júri técnico. No voto popular, o consumidor experimenta o prato no bar participante e acessa, por um totem com QR Code, a plataforma de votação. O público avalia três categorias: melhor cerveja, melhor prato e melhor combinação entre ambos.
O júri técnico é formado por 12 especialistas, divididos em três áreas: gastronomia, cerveja e experiência/atendimento. Todos avaliam as três categorias, mas com pesos diferentes de acordo com a especialidade de cada jurado.
Além da competição, o festival abre espaço para descobertas sensoriais, como destaca Danilo Albuquerque, da Ranks Beer: “As maiores oportunidades estão em apresentar ao público cervejas que não fazem parte do consumo cotidiano. É comum que o juiz-forano prefira estilos mais leves, facilmente encontrados no mercado. Quando convidamos esse cliente para bares e restaurantes fora da rota convencional e apresentamos novas cartas de bebidas, enriquecemos o paladar e, ao mesmo tempo, mostramos a potência da produção cervejeira da cidade.”
Cafés em evidência
Motivadas pelo desejo de fortalecer a cena local e ampliar o acesso a experiências de qualidade, as influenciadoras Mirella Mota e Marina Ribeiro idealizaram o Festival Pé de Café, concurso que dá visibilidade às cafeterias de Juiz de Fora.
“O intuito com a criação do concurso era aproximar as pessoas da cultura das cafeterias, que estão super em alta. Ver mais de 30 mil pessoas acessando lugares onde antes tinham vergonha de entrar, curtindo um tempo de qualidade e indo na contramão do caos ao qual estamos habituados, me gera um profundo sentimento de dever cumprido”, afirma Mirella.
Inspirado por uma viagem à capital paulista e por um circuito de cafeterias pouco convencional, o festival nasceu em 2024 e reúne estabelecimentos de Juiz de Fora e Ibitipoca.
Donas do perfil O Que Fazer em JF, Mirella e Marina se tornaram referência em dicas gastronômicas e culturais na cidade. Para Mirella, o festival é uma extensão natural do trabalho que realizam na página, que tem como propósito transformar a percepção de quem vive ou visita Juiz de Fora.
“Muitas pessoas acham que não há nada de interessante na cidade. Mas quando acessam nossa página, encontram um leque enorme de possibilidades e se sentem bem-vindas. O concurso materializa esse desejo: aproximar o público, proporcionar experiências marcantes e reafirmar nosso amor por cafés, cafeterias e por Juiz de Fora”, diz.
Marina reforça que página e festival se retroalimentam: “A comunicação do concurso acontece majoritariamente dentro da página. O conteúdo que produzimos alimenta o festival, e o festival gera conteúdo. É um fluxo contínuo que facilita muito esse equilíbrio.”
Ela destaca ainda que o concurso atende a uma demanda crescente e dá visibilidade ao segmento. De acordo com Marina, o evento movimenta mais de meio milhão de reais na economia local e contribui para valorizar ainda mais a categoria.
Com metade da renda destinada a ONGs, Mirella aponta que um dos maiores diferenciais do Pé de Café é o preço acessível da experiência. “Por um valor fixo de R$ 40, todos os combos incluem uma bebida, uma comida e uma sobremesa. E quem não consome carne pode substituir por uma versão vegetariana, ampliando o alcance do festival”, explica.
Outro destaque é a inclusão de espaços pet friendly, com combos especiais para os animais em estabelecimentos que oferecem essa opção.
Mas Mirella ressalta que o benefício não termina no consumo do combo: “O público ganha um bilhete premiado com acesso a promoções exclusivas, válidas durante o concurso, além de participar de sorteios com prêmios sensacionais.”
O perfil dos participantes é diverso. “Recebemos adolescentes, adultos, idosos, todos interessados em viver novas experiências. Tenho observado uma tendência crescente das pessoas de todas as idades em buscar momentos mais tranquilos, fugindo do ritmo intenso de trabalho, escola e responsabilidades. Essa diversidade é uma das maiores forças do Pé de Café”, comenta Mirella.
Ela lembra que, na primeira edição, organizada em apenas um mês, o festival atraiu 15 mil pessoas em 11 cafeterias participantes.
Patrimônio de balcão
Considerado um clássico na cidade, o Festival Comida di Buteco nasceu em 2000, em Belo Horizonte, com uma proposta muito local, quase “de bairro”, voltada a valorizar os botecos tradicionais e a gastronomia popular brasileira. Com o sucesso alcançado, outras cidades passaram a se interessar pelo formato e Juiz de Fora logo foi uma delas.
Um dos organizadores do festival na cidade, Toninho Simão, explica que a missão inicial sempre foi clara: transformar vidas por meio do boteco, fortalecendo o pequeno comerciante, preservando a cultura de bar de raiz e celebrando a comida simples e afetiva. Segundo ele, a ideia nunca foi criar um concurso “gourmetizado”, e sim dar visibilidade a botecos autênticos, muitas vezes familiares, que carregam a identidade das cidades.
Passados 25 anos, Toninho observa que o festival evoluiu, cresceu em número de praças, ganhou patrocinadores e espaço na mídia nacional, mas manteve intacta a essência que o tornou referência: foco no boteco de raiz, fortalecimento dos pequenos negócios e compromisso com a tradição da culinária popular. “Essa missão de fundo – o boteco como patrimônio cultural e ferramenta de transformação econômica – continua sendo o fio condutor do projeto”, afirma.
Ao comentar sobre a edição juiz-forana, ele ressalta que o município tem um perfil muito particular. É uma cidade mineira com fortes influências de outras regiões, universitária, com grande circulação de pessoas, e isso se reflete nos botecos. Por isso, quando chegou aqui, ele explica que, o Comida di Buteco precisou respeitar o jeito juiz-forano de botecar – mesas na calçada, clima de bairro, informalidade e atendimento “de casa” -, além de valorizar ingredientes e referências locais que vão do toque interiorano do Rio às influências alemã e italiana presentes em alguns bares. Toninho explica que a curadoria sempre buscou equilibrar botecos antigos, familiares e tradicionais de diferentes bairros, compondo um retrato fiel da cidade. Para o organizador, o resultado é que Juiz de Fora, dentro do concurso nacional, acabou ganhando uma identidade muito própria.
Questionado sobre a influência que o festival exerce e as mudanças que provocou na cena local, Toninho afirma que a chegada do Comida di Buteco desencadeou uma movimentação evidente: o surgimento de outros festivais temáticos, a criação de eventos sazonais em bares inspirados na lógica de votação e passaporte, e a profissionalização da comunicação dos estabelecimentos, que passaram a enxergar esses festivais como oportunidade real de crescimento.
Para ele, o Comida di Buteco se tornou um verdadeiro “case”, mostrando que um festival gastronômico não é apenas entretenimento, mas também um instrumento de negócio e posicionamento para a cidade. A partir disso, outras iniciativas locais passaram a se espelhar no formato, cada uma com sua própria identidade.
Ele explica que o processo de seleção dos participantes envolve mapeamento dos botecos tradicionais da cidade, visitas técnicas para avaliar estrutura, higiene, atendimento e potencial gastronômico, além de critérios de elegibilidade que garantem que sejam negócios de pequeno porte, com cozinha ativa e operação contínua. A partir desse funil, é feita a curadoria final, que busca representar a diversidade geográfica e cultural da cidade por meio de diferentes estilos de boteco.
Os critérios de avaliação incluem sabor, originalidade e apresentação do prato, custo-benefício, cordialidade no atendimento, agilidade, higiene do espaço, temperatura da bebida e autenticidade do ambiente. Esses itens foram sendo incorporados ao longo dos anos, com base na experiência das coordenações nacional e local, no feedback de jurados especializados e no retorno do público e dos próprios donos de boteco. “O que se buscou foi um equilíbrio entre aspectos técnicos, como higiene e manipulação de alimentos, e aspectos emocionais e culturais, como o clima e a experiência completa de boteco”, explica.
Para se tornar vencedor, o boteco precisa conquistar tanto o público quanto o júri. O voto popular representa 50% da nota final, garantindo que a opinião de quem está na ponta, consumindo, tenha protagonismo. Já o voto técnico – também com peso de 50% – vem de um corpo de três jurados que visita anonimamente os estabelecimentos e avalia os critérios definidos pelo regulamento.
Toninho destaca que o impacto do concurso nos estabelecimentos é significativo. Durante o período oficial, muitos botecos trabalham com capacidade máxima, especialmente nos fins de semana. Além do aumento imediato do movimento, ele explica que há melhorias na gestão, com aprimoramento de processos, cardápio, controle de estoque e treinamento das equipes. Segundo o organizador, a exposição na mídia e nas redes sociais fortalece o reconhecimento das marcas e inclui os botecos no roteiro da cidade. Muitos pratos criados para o concurso se tornam permanentes no cardápio e seguem vendendo bem, gerando um legado duradouro.
Ele acrescenta que, além do impacto econômico, o festival impulsiona o turismo: visitantes de cidades vizinhas, ex-moradores que voltam para matar a saudade e pessoas que planejam rotas gastronômicas específicas passam a circular pela cidade durante o concurso. “Tudo isso ajuda a consolidar Juiz de Fora no mapa gastronômico, não só como cidade de passagem, mas como destino de boteco”, diz.
Neste ano em que celebra 25 anos, Toninho lembra que o Comida di Buteco enfrentou mudanças de mercado, crises econômicas, transformações no comportamento do consumidor, avanço das redes sociais e até períodos críticos, como a pandemia. Para ele, manter o concurso vivo exigiu adaptar formato e comunicação às novas realidades, preservar o foco no pequeno boteco e resistir à tentação de transformar o evento em algo voltado apenas para grandes marcas. O segredo, afirma, está em ouvir constantemente os donos de boteco e o público, ajustando o necessário sem descaracterizar o projeto. E, apesar dos desafios, Toninho segue acreditando que uma boa comida sempre encontra lugar à mesa.
*Estagiária sob supervisão da editora Carolina Leonel

