A voz baixa e calma não deixa dúvidas sobre a autoria de "Dentro de mim mora um anjo". Sueli Costa, que hoje completa sete décadas de vida, preserva a doçura da canção que compôs ao lado de Cacaso, poeta e um dos maiores parceiros de uma carreira que começou ainda jovem, nos saraus da badalada casa dos Costa. Autora também de "Jura secreta" e "Coração ateu", gravadas por grandes nomes da Música Popular Brasileira, a mulher de letras românticas e melodias refinadas anda sossegada. Nascida no Rio de Janeiro e criada em Juiz de Fora, Sueli radicou-se na Cidade Maravilhosa, mas sem perder de vista o clima de interior. Sua casa, no Jardim Botânico, não lhe deixa esquecer a cidade do coração. "Tenho amigos aí, pessoas de que gosto muito. Quando chego, já tem um bar que eu vou direto tomar uma cerveja, sabendo que os amigos estarão lá", diz, entre as alegrias da lembrança e a angústia de ver o cenário da música tão pobre de emoções. Conhecida por suas letras, ela hoje adora cantar. "No início eu não tinha vontade, era insegura, queria ficar num cantinho compondo. Hoje adoro estar no palco, com os músicos, trocando aquela energia. É um momento de alegria. Saio de lá rejuvenescida, com força, parece que eu tenho 15 anos", comenta. Por telefone, Sueli conversou com a Tribuna sobre a vida, a carreira e o tempo. Como diz na música "A voz e o verso", eternizada na voz de Simone, a compositora confirma que, para ela, as "canções são sangue, luz e ar".
Tribuna – O que você sente com esses 70 anos?
Sueli Costa – Se acordo e estou viva está bom. Na realidade, não me sinto com 70. Antigamente a gente achava que com 70 anos as pessoas estavam velhas e sem força. Acho que o tempo passou muito rápido. Já tenho 45 anos de músicas gravadas. De carreira, tem muito mais tempo. E parece que foi ontem.
– Existe alguma sensação especial com a data?
– Escolhi uma profissão que eu gosto. Escolhi não, ninguém escolhe, acho que fui escolhida. Faço uma coisa que eu amo. Fico emocionada com uma música, com uma cantora. Um dia desses, vi a Fafá de Belém no Jô Soares, e ela falou de "Dentro de mim mora um anjo". Eu nem dormi. Estava fazendo hora, já tinha tomado meu remedinho para dormir – sem ele eu não me desligo e, quem disse que eu dormia depois disso? Fiquei tão alegre com ela.
– Como está sua vida hoje?
– Estou com uma gatinha chamada Rosa. Estou sozinha e com essa gata siamesa que me deram há pouco tempo. Perdi um gatinho que tinha 14 anos e falava mãe. Minha faxineira mandava eu levá-lo ao Faustão. Meu filho saiu de casa e já está casado. Estou em paz. Moro num lugar que gosto, há 34 anos, no Jardim Botânico. Amo isso aqui, parece uma cidade de Minas, parece Juiz de Fora. Aqui todo mundo se conhece, todo mundo fala "bom dia" e "boa tarde".
– E você continua produzindo muito?
– Muito não. Quando você está gravando, fazendo discos, tem um motor que te manda compor. Mas hoje não existe nem loja de discos. Faço músicas quando me pedem. Acho chato fazer música para não gravar. Às vezes elas saem sozinha. Um dia acordei no meio da noite, sentindo alguém me chamar. Abri os olhos, e não tinha ninguém. Eu havia sonhado. Mas quando fui deitar novamente veio uma música inteira na cabeça. Às 4h da manhã, me levantei, fui para o piano e disse: "Essa não perco". Se dormir já era. No dia seguinte encontrei o Mauro Senise, e ele me perguntou se havia algo novo para gravar. Eu respondi: "Fiz hoje". Tem umas canções que saem sozinhas, que pedem para sair, mas, normalmente, eu tenho feito coisas para quem quer, na certeza de que a música vai ter um rumo.
– A sua geração continua na ativa, com o mesmo prestígio. Isso é sinal de que a música de vocês resiste ao tempo?
– Do jeito que está, acho que vai resistir mesmo. A música no Brasil está muito estranha. Outro dia meu filho falou uma coisa que eu não tinha noção: "Mãe, hoje ninguém tem som mais. As pessoas ouvem música pelo celular ou pelo computador". Os amigos dele não compram som. Tinha uma loja aqui no Rio, a Modern Sound, onde eu fui campeã de vendas durante um mês e meio com meu último disco, de 2007, independente. A Modern Sound era fantástica e hoje não existe mais. Agora só tem as livrarias.
– Você tem acompanhado a nova geração?
– Umas coisas, sim. Mas não tenho me emocionado muito. Estamos num momento difícil. Você liga uma televisão, vai ver uma novela, e só tem porcaria tocando ali. Não tem nada que preste. É um negócio esquisito. Mas isso já aconteceu outras vezes. Ao longo da minha carreira, de vez em quando, haviam entressafras. Na hora em que eles precisam chamam a gente, porque fica tão chato que ninguém aguenta mais. Em síntese, não vejo nada de muito bom mesmo.
– A que se deve essa falta de emoção da música?
– Acho que é a moda do mau gosto mesmo. Uma vai errada, e a outra vai atrás.
– E foi a emoção que permeou sua carreira…
– Eu só gosto do que me toca. Não gosto de coisa bonitinha. Bonitinho é bonitinho e não é bonito. Tem que me emocionar.
– Quais são seus próximos projetos?
– O Canal Brasil vai fazer um DVD com várias participações. Já tivemos algumas reuniões. Claro que minhas cantoras queridas estarão lá, e os cantores também. Fagner, Nana, Simone, e tomara que a Bethânia vá.
– Como é a sua relação com as pessoas que gravaram suas músicas?
– Gosto delas como se fossem parentes. A Nana é uma amiga, uma irmã, e ela diz o mesmo de mim. Uma mostrou a alma para a outra. A gente viveu um tempo de dignidade na música. A Bethânia foi quem praticamente empurrou meu trabalho, fez questão de mostrar, fez um show com oito músicas minhas. São pessoas pelas quais tenho muito afeto, que adoro mesmo. A música me deu essas irmãs. Realmente, tive muita sorte de ter tido esse dom de fazer música.
– Você tem vindo a Juiz de Fora?
– Tenho ido pouco. Ia muito, mas, há dois anos, morreu meu irmão (Élcio Costa), e para mim foi uma porrada na cabeça. Sofro muito para ir. Quando estou aí está bom, mas quando saio volto aos pedaços com saudades dele. Ele era um músico fantástico, tocava um violão que nunca vi na vida.
– Como é a relação com a cidade em suas lembranças?
– Minha casa era o máximo. Na época da bossa nova, a casa vivia cheia, com baixo, baixo acústico, bateria e piano. Todo mundo tocando o dia inteiro. Era bacana, tinha gente que passava por Juiz de Fora e ia direto lá para casa. Eles falavam que haviam duas casas de malucos: a dos Bracher e a dos Costa. A gente podia tudo, e as pessoas não podiam nada. Foi minha mãe quem semeou a música entre nós. Não teve um filho que não tocasse. Ninguém fez nada pouco lá em casa. Minha irmã, Telma, tocava muito bem, a Lisieux compõe muito bem, o Élcio pegava o violão e parecia que era outro instrumento, o Afrânio tocava contrabaixo e piano. Nunca ninguém fez mais ou menos. Todos tocavam bem mesmo. É um orgulho ter uma família assim.
– Para encerrar, você continua tomando seu uísque?
– Claro. Fumo e bebo. Tenho medo de parar com essas coisas. Se parar, é um perigo. Fumo desde os 14 anos e fumo bastante. Agora estou dando uma moderada, estava fumando dois maços e chegava a três, e estou segurando em um. Tenho medo de parar e não tenho vontade. Se deu certo até agora…